A festa do adeus

A velhice cantada por Cartola tem uma mistura inusitada de melancolia e felicidade. A primeira canção de Cartola 70 anos (1979) é a linda “O inverno do meu tempo”, em que a imagem óbvia da última estação do ano é evocada, mas não para falar de morte e decadência. O inverno do tempo do sambista “começa a brotar, a minar”, numa força inaugural rara nas caracterizações da velhice.

Mas não é, tampouco, uma oposição simples à tristeza do fim. Ele não supercompensa a morte anulando a velhice. Pelo contrário: a acentua. “Os sonhos do passado/ no passado estão presentes” e “Já não sinto saudade/ Saudades de nada que vi”. A velhice é absoluta, rege a vida do poeta, e ele está em paz com o que geralmente é caracterizado como coisa ruim, porque o inverno não é ruim. E é cheio de alvoradas.

A juventude, sim, é penosa. “Chorando eu vi a mocidade perdida”, ele canta em “O sol nascerá”. O mundo é um moinho que destrói os sonhos, as esperanças, os amores. E a vida, enquanto acontece, é possibilidade de tristeza: “Infelizmente/ não iremos ao fim da estrada/ eu bem sei, estás cansada/ e eu também cansei”. Mas o imperativo da aurora não deixa a tristeza ser ponto final: “Faz o que te digo, amor/ vá, voltes daqui/ quero te ver contente/ te ver alegre, sempre a sorrir”.

Para Cartola, a velhice não é fim. Faz parte da vida, e a vida é começo e recomeço. O que a velhice traz é a consciência do começo e de sua potência, sempre presente, de alegria. Por isso tanta “esperança” nas letras, tanta aurora, alvorada. “Na madrugada iremos pra casa cantando.”

“Apesar de todo erro/ espero ainda/ que a festa do adeus/ seja a festa da vinda”, ele canta no disco de 1974. Cuja primeira faixa, “Disfarça e chora”, dá o valor da tristeza: “Todo pranto tem hora/ e eu vejo o seu pranto cair/ no momento mais certo/ […] e o seu pranto, ó triste senhora/ vai molhar o deserto”. A alegria encontrada na velhice é feita da tristeza da vida, que o poeta nos aconselha a também desfrutar, pois ela não dura pra sempre. “Aproveita a voz do lamento/ que já vem a aurora.”

As nuvens não existiam

O quinto episódio da sétima temporada de Black Mirror (possível alerta de spoiler) talvez seja, desde o começo da série, o que mais põe em cena a velhice, e só por causa dele eu percebi o quanto Black Mirror foca em em crianças, jovens, adultos, mas quase nunca em velhos.

É uma coisa que tenho pensado: no admirável e temível mundo novo que a revolução digital põs em movimento, pouco se ficcionaliza a velhice. Isso quando o mundo passa por uma transição demográfica que é particularmente visível em países como o Brasil. A população envelheceu, o caos climático se instaurou, a inteligência artificial veio pra ficar e tudo isso está razoavelmente azeitado. Há robôs e implantes e ar-condicionado sendo criados e comercializados para os velhos, que também vão começar a trabalhar cada vez mais e por mais tempo, dando início ao que, de vez em quando na mídia, se chama com entusiasmo cínico de “economia prateada”. Etc. etc. Mas os produtos culturais (por falta de termo melhor) que reimaginam o nosso presente distópico raramente focam na velhice. Ou é impressão minha?

Pra Black Mirror, pelo menos, a impressão serve. “San Junipero”, na terceira temporada, é uma das exceções, mas ali a tecnologia é o que ela seria nos nossos melhores e menos inspirados sonhos, mantendo vivas, jovens e saudáveis as nossas consciências enfim libertas dos corpos decrépitos. As duas personagens velhas são interpretadas, na maior parte do episódio, por atrizes jovens, avatares dos anos dourados das mulheres que, fora da nuvem, só vivem por cuidado paliativo.

Um filme de 2009 do Bruce Willis tem um plot análogo. Assisti uma vez faz muito tempo e achei legal. No RottenTomatoes a aprovação crítica é de 37%. Mas o Bruce Willis sempre vale a pena.

O personagem dele é um agente do FBI (rs) que vive num mundo em que as pessoas ficam dentro de casa, num casulo de realidade aumentada, enquanto vivem por procuração por meio de robôs que saem por aí experimentando as coisas, fazendo os afazeres. Isso faz com que todo mundo esteja seguro dentro de casa e, se o robô se envolve num acidente, a pessoa que está vivendo por meio dele segue intacta e só precisa comprar outro robô pra voltar à vida pública. Obviamente, todo mundo escolhe o robô mais gostoso possível pra se representar na sociedade. Igual os avatares de “San Junipero” (e a semelhança dos enredos para por aí). Obviamente, podendo escolher, todo mundo é jovem. Quem não seria?

Muitas interseções queer, raciais, capacitistas etc. nessa premissa. Quem escolheria ser gay? E trans? E não branco? E PCD? E gordo? A lista não termina. Quem escolheria ser corcunda, gago, ter pau pequeno? E velho? A resposta talvez não seja tão óbvia. Talvez seja.

Mas voltando pra “Eulogy”, o episódio da nova temporada: ele se destaca porque o personagem velho é velho mesmo, e mais ainda: é analógico. De repente chega uma bugiganga na casa dele que vai pedir que ele digitalize as memórias e as fotos guardadas em caixas de sapato no sótão. A bugiganga pede lembranças do fim dos anos 1980, e ele diz: “Naquela época não existia nuvem”. Nada sofreu upload.

O Paul Gianatti tem só 57 anos, mas, pro que importa, o personagem dele já é velho, ao menos no sentido de que vive um mundo que está deixando de existir. É mais velho ainda porque, diferente das velhas de “San Junipero”, ele não quer se transportar para a utopia da juventude. O episódio começa com ele cuidando das rosas de um jardim e se machucando com o dedo no espinho. Como faziam os fenícios.

Isso me fez pensar, millennial em crise de meia idade que estou, que, dentro de algumas décadas, em o mundo não acabando etc., vão morrer as pessoas que conheceram o planeta antigo, sem lixo espacial nem sinal de Wi-Fi. Isso, lógico, sem considerar a grande parcela do mundo que até agora não foi colonizada pelo chip. E sem contar os velhos que farão o upgrade pra nuvem. Que, aliás, é um amontoado de trombolhos pesadíssimos, tão distantes dos nossos dedos quanto o algodão frio que passeia sobre as nossas cabeças num dia bonito.

Mistério renovado

O cachorro deu um pulinho e já chegou no chão ganindo, passou o dia mancando, depois ficou bem. Panguá fez 12 anos na semana passada. Continua jovial, com jeito quase de filhote. Eu chequei a patinha dele comentando: o corpo não acompanha, né, bebê?

Sempre lembro de um velho professor de Educação Artística (quando você tem 14 anos, um homem de 40 é muito velho) dizendo que ele só lembrava da idade que tinha quando se olhava no espelho ou quando precisava correr. Confrontado com limitações inesperadas ou um reflexo que não condizia com a autoimagem é que a idade se realizava. Fora isso, ele era sem tempo, eterno, e a eternidade é (por quê?) jovem.

Foi com as costas travadas há uma semana sem nenhum motivo especial, a vó de 90 anos indo e voltando de previsões de morte e a senioridade cronológica do meu cachorro virando mais um retorno solar que eu terminei de ler Meu irmão, eu mesmo, mais uma tour de force do incansável João Silvério Trevisan, a bicha-mor. É um livro bem fácil de descrever, mas indescritível no que realmente importa, e tem vários momentos de desabafo autobiográfico com relação aos sustos do envelhecimento. Como estas linhas que grifei, nas últimas páginas:

[…] conseguir decifrar parte desse mistério medonho que vejo diante do espelho todas as manhãs, cada dia mais velho e mais enigmático para mim mesmo.

O velho axioma da contracultura “não confie em ninguém com mais de 30 anos” se refere justamente a uma parte da vida em que a maioria das pessoas (é o que se espera e o que se exige) abdicam do mistério. O mistério não paga contas, não te deixa levantar de manhã e tomar banho e escovar os dentes e preencher outros requisitos que tradicionalmente fazem com que uma pessoa seja considerada adulta.

Neste primeiro quarto de século que acaba, a dissolução do trabalho tem exigido que crianças e pessoas velhas, sumariamente excluídas da vida econômica nos tempos mais regulados do capitalismo industrial, monetizem e sejam monetizadas. O Instagram e o Tik Tok, quando jogam o tempo livre no mercado de ações, extinguem o habitat natural do mistério, que precisa se refugiar em lugares mais inóspitos, tipo os esgotos do burn out. O rato feio e a pomba suja, afinal, ainda são triunfos gloriosos da natureza.

Minha avó moribunda tá encarando o mistério inevitável da morte. Trevisan, que é um desajustado exemplar, tem a sorte de um mistério crescente como companheiro de vida. O medo é adubo, o dejeto faz crescer. Meu cachorro late para o céu quando troveja. São lindos os versos finais do primeiro poema do Dao de jing:

玄之又玄
衆妙之門

mistério que se renova no mistério…
porta de todo deslumbramento

(tradução de Mario Bruno Sproviero)

Medos conjuntos

Uma das coisas mais gostosas pra fazer na internet (minha vó dizia: o que é de gosto é regalo da vida) é ler jornal velho, e a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional tem um acervo imenso, variado e gratuito, é praticamente um X-Videos do jornal velho.

Fuçando por lá acabei encontrando a coluna intitulada “Medicina para todos”, publicada no carioca O Jornal pelo (possivelmente) médico Álvaro Vieira. Na edição de 21 de julho de 1953, na página 9, ele responde a carta de uma angustiada leitora anônima num texto chamado “Perturbações da velhice”.

AZ está tão envergonhada que oculta até o nome da cidade de onde escreve, mas Álvaro Vieira assegura que seu problema “é o mesmo de dezenas de jovens por êste imenso Brasil: o medo de, ao envelhecer, tomar o aspecto masculinizante”.

Os terríveis pelos e a natureza da mulher

A pessoa velha, assim como a criança, tem um potencial de androginia muito maior do que se experimenta em outras fases da vida. Talvez por isso as meninas e as idosas sejam embonecadas pelos seus cuidadores e responsáveis: as bijuterias, a maquiagem, os lacinhos e a cor rosa garantem que a identidade “mulher” seja imediatamente reconhecida nessas pessoas que, por si só, talvez não fossem tão “mulher” assim. O mesmo, só que ao contrário, serve para os meninos e os idosos.

Aqui vale uma contextualização histórica: os anos 1940 e 1950 foram extremamente conservadores em matéria de ideologia de gênero. Depois de décadas de gueras mundiais e modernização dos costumes (período em que o papel social da mulher mudou muito no mundo urbano), os meados do século 20 trataram de retomar práticas do século 19 para separar e tornar de novo opostas e excludentes as figuras do “homem” e da “mulher”, sem meio termo nem zona cinzenta. Isso fica evidente na volta do espartilho à silhueta feminina.

Ideologia de gênero à la bloco capitalista durante a Guerra Fria (todas as imagens deste post são retiradas da mesma página de jornal).

É lógico que, nesse contexto de acirramento do binarismo de gênero, AZ estaria muito aflita. Afinal, ter “terriveis pêlos” e não menstruar bastam como características masculinas para invalidar uma mulher na sua identidade mais básica e imperativa: a de “mulher”. Nessa época, aliás, mulher nem gente era, como fica evidente por leis como a de número 3.199, de 14 de abril de 1941, que regulariza a prática de esportes no país e sentencia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompativeis com as condições de sua natureza”.

Em 1949 Simone de Beauvoir estava dizendo o que hoje, pra gente, é o óbvio: que, sendo os homens os legisladores de tudo, eles convenientemente se excluem da “natureza”, e só quem tem “condições” especiais, que precisam ser reguladas, são as mulheres. Daí é só proibir o aborto e o futebol.

Mulheres e crianças por último e sempre sob o nome de um homem.

Filha, esposa, mãe, avó

Deve-se fugir da ambiguidade como o diabo foge do binarismo, e para isso valem todas as intervenções possíveis. Se roupas e leis não forem o bastante, o médico está aí para receitar hormônios e intervenções cirúrgicas – inclusive porque não corresponder à identidade de gênero obrigatória também é sinal de doença. Em O que é transexualidade, Berenice Bento lembra que os primeiros artigos médicos dedicados especificamente à patologização da transexualidade são justamente dos anos 1950.

Felipato aprende que é melhor não ter ideias para o closet.

No caso de AZ e de qualquer senhorita aflita com o futuro, Álvaro Vieira aventa a hipótese de uma “insuficiência ovariana secundaria”, perfeitamente tratável mesmo se causada por tumores. O mais importante, conclui, é que “nada disso seria motivo para adiar ou desmanchar o contrato de casamento”. O destino da mulher é ser filha, esposa, mãe, avó, e tudo colabora para que tal destino não se desatine.

Na página de O Jornal, ao redor da coluna “Medicina para todos”, encontramos diversos indícios da centralidade, no cotidiano da época, do binarismo de gênero e do que se convencionou chamar de família nuclear. A programação de TV anuncia a novela Eu, a mulher e os filhos, “notável sucesso do vídeo”; a coluna “Femina” diz que uma revista de moda masculina inglesa incluiu o poeta T.S. Eliot entre os homens mais bem-vestidos, e pede que isso “sirva de exemplo para alguns intelectuais que acreditam em barbas, displicencia, falta de asseio e roupas bizarras”; no cinema, noticia-se a estreia da chanchada É pra casar?; e, na coluna social, o destaque é a “linda tarde de casamento” que juntou “duas famílias de tradição e prestígio”.

Uma ilustração mostra “o vulto esbelto da jovem noiva”. Espartilho, juventude e matrimônio são o combo pressuposto para uma “tarde tão feliz”, repleta de nomes parecidos, pertencentes a “representantes da legítima sociedade brasileira”.

Jovem noiva, futura avó.

Nessa página, não restam dúvidas de qual papel AZ deve desempenhar. O roteiro está tão bem escrito que o médico assegura: “a maneira mais prática e humana” de ela se livrar de suas preocupações é não se preocupar com elas. Tornar-se uma velha máscula será um problema “para daqui a 60 ou 70 anos”, quando nada disso terá importância. Afinal, mesmo se houver “tal inversão” e AZ se encontrar peluda, infértil e desprovida de estrogênio, “a satisfação de ter sido boa espôsa, boa mãe, boa avó bastam para compensar qualquer desarranjo natural de futuro”. Ou seja: quando a natureza falhar em proibir a ambiguidade de gênero, ela compensará acentuando as características opostas e excludentes de outras identidades: a de “jovem” e a de “velha”.

Errata frágil

Fiquei encafifado com uma coisa que escrevi no último post. Falando sobre a história do príncipe Sidarta, disse que ele se surpreendeu ao ver pela primeira vez uma pessoa velha e descobrir que, ao envelhecer, “o corpo se modifica e fragiliza”.

Um dos maiores desafios de escrever é encontrar o termo mais adequado para as coisas. “O fruto ajustado ao seu redondo”, diz Hilda Hilst, numa metáfora capenga, ao mostrar que a escrita é mesmo muito desencaixada. Ainda assim, a gente tenta.

Dizer que o corpo se modifica com a velhice, me parece, não tem erro. Capaz que essa seja a verdadeira característica do envelhecimento, desde que a gente nasce. Não lembro onde li (seria a Ecléa Bosi? Walter Benjamin? preciso arranjar um jeito de anotar melhor essas coisas) que o envelhecimento nada mais é do que a inscrição do tempo na carne. Mesmo no caso de Benjamin Button, o corpo é o relógio da vida. Mesmo no caso de Dorian Gray, ainda que por procuração.

Tira de Laerte com um autorretrato em cada década da vida da cartunista, dos zero aos setenta anos.
Laerte <3

Meu problema, relendo o texto publicado, foi com a ideia de que o corpo se fragiliza. Não sou médico nem biólogo nem nada disso, mas a pulga atrás da orelha me disse que isso pode ser um daqueles preconceitos que a boa intenção não elimina. Nesses casos, mesmo na ignorância, a atenção ajuda.

O que lembrei imediatamente, quando fiquei atento, foi que dizem que um infarto do miocárdio é muito mais perigoso aos 30 do que aos 80 anos. Sei lá o quanto isso é verdade, mas parece que é e, mesmo desconsiderando os mis´térios do coração, a vida me mostra que o lugar do calo na pele é muito mais resistente. E, variando sobre o mesmo tema, RuPaul sempre fala nos discursos de autoajuda que o lugar onde o osso quebrou, depois de regenerado, se torna a parte mais dura do osso.

A passagem do tempo e sua inscrição na carne não têm nenhum valor apriorístico, quer dizer, por si só a mudança não é boa nem ruim. E aqui vale copiar e colar o famoso soneto camoniano:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Que eu esteja entendendo a fragilidade como uma coisa negativa é tema que vou levar pra terapia e pra um futuro post. Mas fato é: pode-se dizer que o corpo fragiliza ao envelhecer, mas também pode-se dizer que ele se fortalece. E o espanto é esse.