Medos conjuntos

Uma das coisas mais gostosas pra fazer na internet (minha vó dizia: o que é de gosto é regalo da vida) é ler jornal velho, e a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional tem um acervo imenso, variado e gratuito, é praticamente um X-Videos do jornal velho.

Fuçando por lá acabei encontrando a coluna intitulada “Medicina para todos”, publicada no carioca O Jornal pelo (possivelmente) médico Álvaro Vieira. Na edição de 21 de julho de 1953, na página 9, ele responde a carta de uma angustiada leitora anônima num texto chamado “Perturbações da velhice”.

AZ está tão envergonhada que oculta até o nome da cidade de onde escreve, mas Álvaro Vieira assegura que seu problema “é o mesmo de dezenas de jovens por êste imenso Brasil: o medo de, ao envelhecer, tomar o aspecto masculinizante”.

Os terríveis pelos e a natureza da mulher

A pessoa velha, assim como a criança, tem um potencial de androginia muito maior do que se experimenta em outras fases da vida. Talvez por isso as meninas e as idosas sejam embonecadas pelos seus cuidadores e responsáveis: as bijuterias, a maquiagem, os lacinhos e a cor rosa garantem que a identidade “mulher” seja imediatamente reconhecida nessas pessoas que, por si só, talvez não fossem tão “mulher” assim. O mesmo, só que ao contrário, serve para os meninos e os idosos.

Aqui vale uma contextualização histórica: os anos 1940 e 1950 foram extremamente conservadores em matéria de ideologia de gênero. Depois de décadas de gueras mundiais e modernização dos costumes (período em que o papel social da mulher mudou muito no mundo urbano), os meados do século 20 trataram de retomar práticas do século 19 para separar e tornar de novo opostas e excludentes as figuras do “homem” e da “mulher”, sem meio termo nem zona cinzenta. Isso fica evidente na volta do espartilho à silhueta feminina.

Ideologia de gênero à la bloco capitalista durante a Guerra Fria (todas as imagens deste post são retiradas da mesma página de jornal).

É lógico que, nesse contexto de acirramento do binarismo de gênero, AZ estaria muito aflita. Afinal, ter “terriveis pêlos” e não menstruar bastam como características masculinas para invalidar uma mulher na sua identidade mais básica e imperativa: a de “mulher”. Nessa época, aliás, mulher nem gente era, como fica evidente por leis como a de número 3.199, de 14 de abril de 1941, que regulariza a prática de esportes no país e sentencia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompativeis com as condições de sua natureza”.

Em 1949 Simone de Beauvoir estava dizendo o que hoje, pra gente, é o óbvio: que, sendo os homens os legisladores de tudo, eles convenientemente se excluem da “natureza”, e só quem tem “condições” especiais, que precisam ser reguladas, são as mulheres. Daí é só proibir o aborto e o futebol.

Mulheres e crianças por último e sempre sob o nome de um homem.

Filha, esposa, mãe, avó

Deve-se fugir da ambiguidade como o diabo foge do binarismo, e para isso valem todas as intervenções possíveis. Se roupas e leis não forem o bastante, o médico está aí para receitar hormônios e intervenções cirúrgicas – inclusive porque não corresponder à identidade de gênero obrigatória também é sinal de doença. Em O que é transexualidade, Berenice Bento lembra que os primeiros artigos médicos dedicados especificamente à patologização da transexualidade são justamente dos anos 1950.

Felipato aprende que é melhor não ter ideias para o closet.

No caso de AZ e de qualquer senhorita aflita com o futuro, Álvaro Vieira aventa a hipótese de uma “insuficiência ovariana secundaria”, perfeitamente tratável mesmo se causada por tumores. O mais importante, conclui, é que “nada disso seria motivo para adiar ou desmanchar o contrato de casamento”. O destino da mulher é ser filha, esposa, mãe, avó, e tudo colabora para que tal destino não se desatine.

Na página de O Jornal, ao redor da coluna “Medicina para todos”, encontramos diversos indícios da centralidade, no cotidiano da época, do binarismo de gênero e do que se convencionou chamar de família nuclear. A programação de TV anuncia a novela Eu, a mulher e os filhos, “notável sucesso do vídeo”; a coluna “Femina” diz que uma revista de moda masculina inglesa incluiu o poeta T.S. Eliot entre os homens mais bem-vestidos, e pede que isso “sirva de exemplo para alguns intelectuais que acreditam em barbas, displicencia, falta de asseio e roupas bizarras”; no cinema, noticia-se a estreia da chanchada É pra casar?; e, na coluna social, o destaque é a “linda tarde de casamento” que juntou “duas famílias de tradição e prestígio”.

Uma ilustração mostra “o vulto esbelto da jovem noiva”. Espartilho, juventude e matrimônio são o combo pressuposto para uma “tarde tão feliz”, repleta de nomes parecidos, pertencentes a “representantes da legítima sociedade brasileira”.

Jovem noiva, futura avó.

Nessa página, não restam dúvidas de qual papel AZ deve desempenhar. O roteiro está tão bem escrito que o médico assegura: “a maneira mais prática e humana” de ela se livrar de suas preocupações é não se preocupar com elas. Tornar-se uma velha máscula será um problema “para daqui a 60 ou 70 anos”, quando nada disso terá importância. Afinal, mesmo se houver “tal inversão” e AZ se encontrar peluda, infértil e desprovida de estrogênio, “a satisfação de ter sido boa espôsa, boa mãe, boa avó bastam para compensar qualquer desarranjo natural de futuro”. Ou seja: quando a natureza falhar em proibir a ambiguidade de gênero, ela compensará acentuando as características opostas e excludentes de outras identidades: a de “jovem” e a de “velha”.

Sonhos não envelhecem: lições de Luiza Erundina

Aos 85, quase 86 anos, Luiza Erundina é a parlamentar mais velha eleita em 2018. Só isso, no entanto, não seria tão digno de nota – 20,26% da Câmara Federal e 37,03% do Senado eleitos naquele ano eram compostos por pessoas idosas, o que poderia constituir a maior bancada do Congresso Nacional, segundo levantamento da Deutsche Welle. Tal prevalência, porém, não indica que os velhos estejam bem representados na política, apenas que os políticos são representativos de uma elite branca, patrimonialista e liderada por homens heterossexuais.

Aí sim é que Erundina se destaca, inevitavelmente: embora também seja branca, é mulher, algo incomum na política institucionalmente machista do Brasil. Além disso, na sua longa carreira, nunca performou a heterossexualidade que se espera de mulheres de sua geração. “Eu me casei com a política”, ela diz, professando uma missão que transcende as expectativas burguesas de uma vida privada (impeditivas, para as mulheres, de ter vida pública). E, mais impressionante ainda, Erundina é velha – e longeva.

A questão etária ganhou destaque na sua trajetória política em 2016, quando concorreu à prefeitura de São Paulo com o slogan “Sonhos não envelhecem”. O verso da canção “Clube da esquina nº 2” virou uma espécie de mantra da candidata também em 2018 e agora, em 2020.

Transformando em potência o que se percebe socialmente como desvantagem, ela tem buscado articular em seu discurso os signos da juventude e da velhice, tanto como estágios da vida humana, complementares e igualmente dignos, quanto como metáforas contraditórias da renovação e da obsolescência na política.

Marie Claire. Sobre as críticas à sua idade: dizem por exemplo que passou da hora da senhora se aposentar da política, que deveria ceder lugar para gente mais nova. Qual é sua resposta para esse tipo de comentário?
Luiza Erundina. Que se danem! Estou vivendo meu tempo, minha saúde e inteligência, minha experiência. Estou fazendo mal para alguém? Não estou. E quero que mulheres com a minha idade também se sintam assim, que sejam contagiadas pela minha vivência e vontade de seguir trabalhando. E, para aqueles aqueles que se sentem incomodados, desejo que tenham a sorte de chegar onde cheguei com a energia e convicção que tenho. Sabe, se você perde seu projeto de vida, tudo perde o sentido. E meu projeto de vida não termina no meu tempo. Meu projeto é sonhar com outro futuro. Não quero só mudar São Paulo e Brasil, quero mudar o mundo. O meu sonho, de uma sociedade socialista, fraterna e igualitária, infelizmente não vai acontecer no meu tempo, tenho consciência disso. Mas se eu não fizer minha parte agora, esse modelo de sociedade não vai acontecer nunca. A velhice não é doença, não é defeito, a velhice não impede o sonho. Portanto o sonho que me move, em relação às transformações que a sociedade precisa, não envelheceu.
Material da campanha de 2016

Contraditória também tem sido, talvez de um jeito bem mais problemático, a campanha de 2020. Se em 2016 o partido enfatizou a face combativa da vida pública de Erundina, esta ano os memes tendem a se apropriar de sua imagem de mulher velha para enquadrá-la justamente na matriz heterossexual em que antes ela não parecia se encaixar. Em outras palavras, o marketing digital transformou Erundina, de uma rebelde boss bitch sapatão, em uma doce vovó caseira.

O quanto a candidata aprova essa estratégia não sabemos. Na contramão desse tom, Erundina disse, em vídeo veiculado às vésperas do primeiro turno: “Eu faço um apelo aos companheiros e às companheiras da minha geração: não se deixem ser tratados com infantilidade, isso não é uma forma respeitosa de se tratar um idoso! Meu apelo é pros 1.800.000 idosos que essa cidade tem, e que são uma força viva, humana, enorme!”.

As imagens da Erundina vovó aparecem nas redes sociais de Guilherme Boulos, mas não nas de sua vice. Sendo uma política bastante profissional, é de se imaginar que ela não seja totalmente avessa a concessões que favoreçam o momento (nunca será demais lembrar, para não idealizarmos a política institucional, que Michel Temer concorreu à mesma prefeitura de São Paulo como vice de Erundina em 2004). Convicções e concessões à parte, porém, o malabarismo que se precisa fazer com a idade da candidata é sinal da velhofobia e da misoginia presentes no imaginário e nas disputas políticas, mas também da sagacidade e da resiliência de uma mulher experiente e combativa, que espero que seja eleita no próximo domingo. E que, vice-prefeita, ela seja a rebelde radical, velha e jovem, de que esta cidade precisa desesperadamente.

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