Errata frágil

Fiquei encafifado com uma coisa que escrevi no último post. Falando sobre a história do príncipe Sidarta, disse que ele se surpreendeu ao ver pela primeira vez uma pessoa velha e descobrir que, ao envelhecer, “o corpo se modifica e fragiliza”.

Um dos maiores desafios de escrever é encontrar o termo mais adequado para as coisas. “O fruto ajustado ao seu redondo”, diz Hilda Hilst, numa metáfora capenga, ao mostrar que a escrita é mesmo muito desencaixada. Ainda assim, a gente tenta.

Dizer que o corpo se modifica com a velhice, me parece, não tem erro. Capaz que essa seja a verdadeira característica do envelhecimento, desde que a gente nasce. Não lembro onde li (seria a Ecléa Bosi? Walter Benjamin? preciso arranjar um jeito de anotar melhor essas coisas) que o envelhecimento nada mais é do que a inscrição do tempo na carne. Mesmo no caso de Benjamin Button, o corpo é o relógio da vida. Mesmo no caso de Dorian Gray, ainda que por procuração.

Tira de Laerte com um autorretrato em cada década da vida da cartunista, dos zero aos setenta anos.
Laerte <3

Meu problema, relendo o texto publicado, foi com a ideia de que o corpo se fragiliza. Não sou médico nem biólogo nem nada disso, mas a pulga atrás da orelha me disse que isso pode ser um daqueles preconceitos que a boa intenção não elimina. Nesses casos, mesmo na ignorância, a atenção ajuda.

O que lembrei imediatamente, quando fiquei atento, foi que dizem que um infarto do miocárdio é muito mais perigoso aos 30 do que aos 80 anos. Sei lá o quanto isso é verdade, mas parece que é e, mesmo desconsiderando os mis´térios do coração, a vida me mostra que o lugar do calo na pele é muito mais resistente. E, variando sobre o mesmo tema, RuPaul sempre fala nos discursos de autoajuda que o lugar onde o osso quebrou, depois de regenerado, se torna a parte mais dura do osso.

A passagem do tempo e sua inscrição na carne não têm nenhum valor apriorístico, quer dizer, por si só a mudança não é boa nem ruim. E aqui vale copiar e colar o famoso soneto camoniano:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Que eu esteja entendendo a fragilidade como uma coisa negativa é tema que vou levar pra terapia e pra um futuro post. Mas fato é: pode-se dizer que o corpo fragiliza ao envelhecer, mas também pode-se dizer que ele se fortalece. E o espanto é esse.

Barbie em: A princesa e a velha

A história de Sidarta Gautama é famosa: príncipe riquíssimo, ele vivia dentro dos castelos do pai, cercado e protegido das coisas feias e difíceis do mundo. Um dia, decidiu sair da gaiola dourada para ver o que havia lá fora.

Foram três escapadas na companhia de um subordinado didático. Na primeira, ele se deparou com um homem velho e ficou estupefato. Então aprendeu que as pessoas envelhecem, que o corpo se modifica e fragiliza1 com a passagem do tempo. Na segunda, encontrou um sanatório cheio de doentes, e aprendeu que o corpo humano pode ser acometido a qualquer momento por sofrimentos físicos indizíveis. Na terceira, passou por um cortejo fúnebre. Então aprendeu que todo mundo morre.

Ele decidiu nunca mais voltar ao palácio. Saiu por aí pra conhecer e entender as coisas do mundo. E um dia atingiu a iluminação e se tornou o Buda.


Barbie (2023), de Greta Gerwig, reconta essa história. Não necessariamente na mesma ordem.

O primeiro encontro dilacerante da personagem de Margot Robbie é com a morte, ou melhor, com o pensamento da morte. Assim como no caso de Sidarta, é um incômodo intuitivo que faz com que tudo pareça menos do que o necessário, e impõe-se a necessidade de conhecer algo mais.

Cena de Barbie. A jovem Margot Robbie dança sorrindo e pergunta: "Alguma vez vocês já pensaram na morte?".
“Alguma vez vocês já pensaram na morte?”

O grande encontro com a doença é o colapso da saúde mental, que resulta no anúncio publicitário da Barbie Deprimida (“ansiedade e ataques de pânico são vendidos separadamente”). Não vou escrever sobre isso, mas: se fosse um filme do século 20, talvez Barbie quebrasse uma perna ou pegasse uma gripe. Leitura relacionada: Neoliberalismo como gestão do sofrimento, organizado por Christian Dunker, Nelson da Silva Junior e Vladimir Safatle (ed. Autêntica, 2021).

Já a velhice chega ao conhecimento da Barbie em dois encontros: o segundo é com a Demiurga, quer dizer, a criadora do brinquedo, Ruth Handler, interpretada por Rhea Pearlman, que substituiu seu característico cabelo castanho encaracolado por uma densa cabeleira branca para compor a personagem. Ruth pega Barbie pela mão para acompanhar a boneca no destino que o filme lhe dá e, tal qual uma sábia avó, oferece a ela valorosas lições de vida.

Mas o primeiro desses encontros é mais favorável a um paralelo com a história de Sidarta: sentada num ponto de ônibus, Barbie olha para o lado e vê uma velha sendo apenas velha. De cabelo meio desgrenhado, blusa de frio, tiara brilhante e quase nenhuma maquiagem, ela levanta os olhos do jornal e as duas se encaram. Barbie diz, maravilhada: “Você é tão linda!”; e a velha responde, quase irritada com a obviedade: “Eu sei disso!”.


A personagem é interpretada pela figurinista Ann Roth, de 91 anos. Creditada no IMDB como The Woman on the Bench (A Mulher no Banco), Roth diz que, quando convidada por Gerwig, a diretora disse que ela interpretaria “uma Barbie real do mundo real”.

A cena não faz parte da sequência de acontecimentos de Barbie. Se tivesse sido excluída da versão final, o filme não perderia em intelegibilidade e a história continuaria sendo a mesma. Mas ela é, de algum modo, o resumo de tudo, ou, segundo Greta Gerwig, “o coração do filme”. As duas mulheres sentadas lado a lado se espelham, são variações de um mesmo personagem, mulher, ou ser humano, ou ideia de ser humano. E é talvez aí que a Barbie percebe que quer ser velha.

Ninguém quer envelhecer? Quando o ideal de beleza é transferido da jovem loira para a pessoa velha, o desejo de identificação também é. Querer ser velha é a grande descoberta da boneca. E, se a beleza é o fiel da balança, fica garantido que, assim como no slogan da Mattel, na visão de Greta Gerwig a velha é que é o símbolo de “tudo que você quer ser”.

Cena de Barbie. Ann Roth, velha de cabelos brancos e rosto enrugado, dá um meio sorriso para Margot Robbie, que está fora de foco.
Obviamente.

  1. Fragiliza? Leia a errata no post “Errata frágil” ↩︎