Duas pandemias e outras plantas que nascem

Ontem, a pandemia de aids fez 40 anos. O HIV provavelmente já estava circulando por aí desde o começo do século 20, mas foi só em 1981 que um boletim do governo dos Estados Unidos noticiou cinco bichas com uma doença estranha, duas já mortas, e a divulgação na mídia fez mais casos aparecerem, e logo o mundo inteiro tinha aids.

Hoje, a maior Parada do Orgulho LGBTQIA+ e uma das maiores manifestações políticas do mundo acontece virtualmente celebrando a vida e a história do vírus e da doença que fazem parte da vida e da história da nossa comunidade. As ruas de São Paulo, no entanto, estão vazias por causa de outra pandemia, de duas pelo menos: a do Sars-Cov 2 e a do bolsonarismo. Uma independe da outra, mas as duas combinadas são responsáveis por matar umas 500 mil pessoas, metade do número de gente que encontrei na primeira edição da Parada que fui, em 2003, quando a festa-marcha reuniu pela primeira vez 1 milhão de pessoas.

O tema naquele ano era “Construindo políticas homossexuais”. Descontado o anacronismo do termo, a ideia continua sendo boa. Se políticas LGBTfóbicas são responsáveis pela ampliação vertiginosa do genocídio brasileiro desse último ano, políticas LGBTQIA+ talvez dessem pra gente a chance de viver mais e melhor, com mais gente, com mais saúde. Talvez, também, elas fossem um jeito de quebrar o padrão (mais esse) de morte das pandemias, que podem até ser biologicamente inevitáveis, mas com certeza não são politicamente inocentes.

Assim como a pandemia de aids atingiu massivamente a comunidade LGBTQIA+, a pandemia de covid-19 matou principalmente as pessoas velhas. Só que, mesmo dentro desses grupos já fragilizados, a necropolítica buscou aquelas pessoas cuja morte é ainda mais indiferente, prioritária, satisfatória: nas comunidades pobres, negras, indígenas é que as doenças proliferam com mais crueldade, numa atualização da mesma tática colonial que dizimou civilizações inteiras do nosso continente espalhando vírus como o da gripe.

Pintura de tinta acrílica sobre tela. Uma figura masculina sem rosto nem roupas está sentada no chão, no canto de um quarto vazio. Além dela, do chão e das paredes, só há uma janela retangular branca, sem nada aparecendo. O resto da pintura é em tons de azul e amarelo, com contornos grossos em preto.
Looking for Normal, de Luis Mario Tavales. Pintura de 2021. Veja a página do artista na plataforma Visual Aids

Esta semana, no dia de Corpus Christi, tomei a primeira dose da vacina. Foi um momento de alívio e alegria, mas também de raiva e tristeza. No caso do Sars-Cov-2, a imunização poderia ter chegado meses antes, centenas de milhares de vidas antes. No caso do HIV, os remédios têm bastado para uma vida mínima. Não fosse o Sistema Único de Saúde, com certeza nem isso seria possível, e a gente faz o que pode com aquilo que a gente tem. Mas é muito pouco, é muito tarde – e é muito cruel que uma coisa simples e por si só dolorida, a doença, seja aproveitada para que os perversos gozem o martírio e a morte prematura de quem eles decidem que não importa. (Perdoem se é uma indignação ingênua. Fui vacinado no dia que comemora a ressurreição de Cristo, vou me dar esse luxo.)

Outras pandemias virão, talvez piores. A história vai continuar rendendo uns enredos que a gente preferiria não viver. De vez em quando, porém, vamos encontrar alguns momentos de alívio, e quem sabe as “políticas homossexuais” possam ser implementadas aqui e ali, quem sabe com elas a gente encontre caminhos, até soluções. Vou ser ingênuo, mas não vou ser otimista, porque estou triste e cansado. A doença também faz suas rugas. Sigamos.

Doze frascos de Truvada enfileirados e colados a uma parede branca. Os frascos são brancos, têm uma linha amarela no rótulo e informações sobre o remédio em letra preta ilegível. De dentro deles saem mudas de plantas, com estágios de desenvolvimento variados.
Suerte, de Beto Pérez. Instalação de 2019. Veja mais no site do artista

A velha vedete

Um dos melhores momentos de Dercy Gonçalves no cinema é o filme A grande vedete (1958), que ela protagoniza como Janete, uma atriz que não quer admitir que envelheceu. Seu assistente, Ambrósio (Humberto Catalano), e sua camareira, Fifina (Zezé Macedo), adulam ela e alimentam sua ilusão de ser um símbolo sexual à prova do tempo. Ambrósio, principalmente, enche o camarim de presentes de admiradores falsos e paga uma claque para bater palma bem alto, abafando o som das risadas quando Janete tropeça num degrau.

Aviso de spoilers. Apesar de velha e iludida, Janete não é uma vedete sem talento, muito pelo contrário. Sua jornada no filme consiste em perceber que as limitações corporais da idade (a visão debilitada, a dificuldade em completar certos movimentos, a falta de apelo sexual para o grande público) não têm relação com seu valor como artista. Estrelando a revista Saias curtas, por exemplo, ela é sucesso há vinte anos e continua sendo uma grande estrela, mesmo que tenha que substituir o sapato de salto por uma sapatilha mais confortável. Talvez os homens não desejem Janete, mas o público ama ela.

Furacão Dercy Gonçalves: Janete apresenta a música “Saias curtas”, de Lamartine Babo e Lyrio Panicali, no filme A grande vedete

Plano e contraplano

A velhice de Janete é o grande tema do filme. A maquiagem acentua as rugas e as expressões que Dercy, comediante refinadíssima (afinal, pode-se ser refinada até na baixaria), despeja, uma atrás da outra, no corpo de Janete dentro e fora do palco. O filme aproveita a atriz em inúmeros closes, e nos melhores momentos nós vemos no rosto de Dercy, simultaneamente, camadas superpostas de Janete: a atriz talentosa, a atriz que não está sabendo usar seu talento, a mulher orgulhosa, a mulher frágil e, enfim, a atriz séria sendo interpretada por uma comediante.

Imagem em movimento de Dercy Gonçalves interpretando a dançarina Janete num número de dança supostamente árabe. Close da atriz fazendo caras e bocas enquanto sua personagem tenta sensualizar.

Há momentos, contudo, em que não apenas nós e os outros coadjuvantes e figurantes da história de Janete percebemos a inadequação da velha. É no espelho do camarim que a vedete se encontra com algo que destoa da imagem que tenta projetar e incorporar; então muda o jogo de olhares e Janete, vista por todo mundo, finalmente enxerga a si mesma.

Quadro Vanitas, de Bernardo Strozzi, pintado em aproximadamente 1637. A pintura a óleo mostra uma velha vaidosa se arrumando em frente ao espelho. Ela é auxiliada por duas moças que riem.
Vanitas (A velha coquete) (c. 1637), de Bernardo Strozzi

O espelho tem uma presença expressiva nas elaborações artísticas da velhice. Como símbolo tanto da vaidade quanto do autoconhecimento, os autores de comédia o colocam em frente às pessoas velhas (às mulheres, principalmente) para mostrar para nós, o público, a evidente teimosia com que elas se agarram a uma posição social que não condiz com a imagem dos seus corpos. Ou, em chave trágica, para retirar a personagem da ilusão e mergulhar ela na triste, dura e inevitável realidade. No final de A grande vedete, Janete encontra esse espelho trágico.

Imagem em movimento. Janete, interpretada por Dercy Gonçalves, está vestida de bailarina, maquiada, e olha para o espelho com tristeza.

Ela está se arrumando para o último ensaio de seu próximo grande número sensual quando escuta, por acidente, Ambrósio dizendo que tem pena da velha iludida, para quem o palco é a única razão de viver. A revelação de que todos enxergam o que ela acreditava esconder, e de que ela é objeto de pena, não de admiração, faz com que Janete tenha um colapso nervoso seguido de uma compreensão lúcida de que precisa abdicar do papel de protagonista da peça e cedê-lo a uma artista jovem.

A nova peça estreia sem Janete e é um sucesso, com a consagração da jovem bailarina como a nova grande estrela. Mas, depois dos aplausos, em tom de bis, o público grita o nome de Janete. Surpresa, ela vai ao centro do palco, é ovacionada e, a pedidos, apresenta de improviso um de seus maiores sucessos. Descobrimos, enfim, que Ambrósio não precisava ter fingido as flores e contratado a claque. O “grande” do título do filme, que era uma ironia no começo, no final se revela uma coroação.

Dois contos de Samuel Rawet

Contos do imigrante, de Samuel Rawet, começa com dois contos. O primeiro se chama “O profeta” e começa num navio que chega da Europa, tudo é presumido: um judeu velho, todo coberto de sobriedade, se encontra com parentes que não via desde a infância, só por fotos. Eles se abraçam, ficam alegres com a chegada do estranho. Ele não fica muito.

O livro é de 1956 e o cenário é uma vida marcada por pogroms e campos de extermínio, fome, tristeza. Isso do lado europeu, pelo menos. Depois de muito tempo e pouca conversa, o velho começa a entender melhor onde se meteu: “Soube ser recente a fortuna do irmão. Numa pausa contara-lhe os anos de luta e subúrbio, e triunfante, em gestos largos, concluía pela segurança atual. Mais que as outras sensações essa ecoou fundo. Concluiu ser impossível a afinidade, pois as experiências eram opostas. A sua, amarga. A outra, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempo!? Deus, meu Deus! As noites de insônia sucederam-se”.

Aqui, no Brasil, os judeus eram pouco mais do que meros brancos, podiam prosperar. O velho europeu, aliás, só tem de “profeta” o apelido que recebe sem entender, pois não fala a língua. Circunspecto, barba branca e comprida, ele não participa da piada, mas percebe que, quando chega, os risos param.

O segundo conto também é sobre uma velha recém-chegada. Ida, de “A prece”, acabou ficando tempo demais na casa dos que a acolheram e, acabado o interesse pelas histórias e pela figura pitoresca da hóspede, ela se mudou para um quarto de cortiço, sozinha com suas tralhas. “Ida sentia um cansaço inundar-lhe a alma. Filhos, já os tivera, marido também. De tudo, só o retrato ficou na parede. E ela.”

Os vizinhos são de uma simpatia indiferente, com exceção do grupo de crianças que acha a velha engraçada, esquisita, gosta de provocá-la para ouvir os xingos em outra língua, atiram pedras nela. Inevitavelmente, as crianças criam fantasias de bruxa para falar sobre os costumes bizarros de Ida e convencem os adultos de que algo muito errado acontece no quartinho da estrangeira. É então que uma multidão invade o aposento. A velha, rezando e chorando os seus mortos, só percebe a situação quando encontra os rostos constrangidos dos vizinhos que, em vez de rituais satânicos e bebês mortos, só toparam com uma velha triste. “Isso é reza lá da terra deles”, alguém sussurra, e todos saem em silêncio.


Começar o livro com um conto sobre um homem e outro sobre uma mulher deve ter parecido muito lógico a Samuel Rawet, porque o século 20 tinha dessas: “homem” e “mulher”, combinados, pareciam dar a compreensão do todo da humanidade. Personagens velhos, por sua vez, dão a compreensão de certa humanidade: a dos sobreviventes de uma experiência bem específica de privação e tortura. Acabada a urgência do terror, não tendo nada além de seu corpo e suas perdas, esses velhos vêm dar numa terra em tudo estrangeira, onde mesmo as pessoas próximas vivem uma espécie de universo paralelo. (Se escrevesse hoje, talvez Rawet tivesse vontade de colocar seus personagens em contato com os desterrados da nossa própria terra. Não são e não eram poucos. À época, no entanto, parece que isso não lhe ocorreu.)

Os velhos de “O profeta” e “A prece” acumulam, na idade, a tristeza e o medo persistentes em uma vida inteira. Nessas circunstâncias, talvez eles fossem velhos ainda que fossem jovens. Já o irmão vitorioso é o contrário: jovem ainda que velho. Porque o tempo é medido em quantidade, mas também pode ser valorado em qualidade.

Sonhos não envelhecem: lições de Luiza Erundina

Aos 85, quase 86 anos, Luiza Erundina é a parlamentar mais velha eleita em 2018. Só isso, no entanto, não seria tão digno de nota – 20,26% da Câmara Federal e 37,03% do Senado eleitos naquele ano eram compostos por pessoas idosas, o que poderia constituir a maior bancada do Congresso Nacional, segundo levantamento da Deutsche Welle. Tal prevalência, porém, não indica que os velhos estejam bem representados na política, apenas que os políticos são representativos de uma elite branca, patrimonialista e liderada por homens heterossexuais.

Aí sim é que Erundina se destaca, inevitavelmente: embora também seja branca, é mulher, algo incomum na política institucionalmente machista do Brasil. Além disso, na sua longa carreira, nunca performou a heterossexualidade que se espera de mulheres de sua geração. “Eu me casei com a política”, ela diz, professando uma missão que transcende as expectativas burguesas de uma vida privada (impeditivas, para as mulheres, de ter vida pública). E, mais impressionante ainda, Erundina é velha – e longeva.

A questão etária ganhou destaque na sua trajetória política em 2016, quando concorreu à prefeitura de São Paulo com o slogan “Sonhos não envelhecem”. O verso da canção “Clube da esquina nº 2” virou uma espécie de mantra da candidata também em 2018 e agora, em 2020.

Transformando em potência o que se percebe socialmente como desvantagem, ela tem buscado articular em seu discurso os signos da juventude e da velhice, tanto como estágios da vida humana, complementares e igualmente dignos, quanto como metáforas contraditórias da renovação e da obsolescência na política.

Marie Claire. Sobre as críticas à sua idade: dizem por exemplo que passou da hora da senhora se aposentar da política, que deveria ceder lugar para gente mais nova. Qual é sua resposta para esse tipo de comentário?
Luiza Erundina. Que se danem! Estou vivendo meu tempo, minha saúde e inteligência, minha experiência. Estou fazendo mal para alguém? Não estou. E quero que mulheres com a minha idade também se sintam assim, que sejam contagiadas pela minha vivência e vontade de seguir trabalhando. E, para aqueles aqueles que se sentem incomodados, desejo que tenham a sorte de chegar onde cheguei com a energia e convicção que tenho. Sabe, se você perde seu projeto de vida, tudo perde o sentido. E meu projeto de vida não termina no meu tempo. Meu projeto é sonhar com outro futuro. Não quero só mudar São Paulo e Brasil, quero mudar o mundo. O meu sonho, de uma sociedade socialista, fraterna e igualitária, infelizmente não vai acontecer no meu tempo, tenho consciência disso. Mas se eu não fizer minha parte agora, esse modelo de sociedade não vai acontecer nunca. A velhice não é doença, não é defeito, a velhice não impede o sonho. Portanto o sonho que me move, em relação às transformações que a sociedade precisa, não envelheceu.
Material da campanha de 2016

Contraditória também tem sido, talvez de um jeito bem mais problemático, a campanha de 2020. Se em 2016 o partido enfatizou a face combativa da vida pública de Erundina, esta ano os memes tendem a se apropriar de sua imagem de mulher velha para enquadrá-la justamente na matriz heterossexual em que antes ela não parecia se encaixar. Em outras palavras, o marketing digital transformou Erundina, de uma rebelde boss bitch sapatão, em uma doce vovó caseira.

O quanto a candidata aprova essa estratégia não sabemos. Na contramão desse tom, Erundina disse, em vídeo veiculado às vésperas do primeiro turno: “Eu faço um apelo aos companheiros e às companheiras da minha geração: não se deixem ser tratados com infantilidade, isso não é uma forma respeitosa de se tratar um idoso! Meu apelo é pros 1.800.000 idosos que essa cidade tem, e que são uma força viva, humana, enorme!”.

As imagens da Erundina vovó aparecem nas redes sociais de Guilherme Boulos, mas não nas de sua vice. Sendo uma política bastante profissional, é de se imaginar que ela não seja totalmente avessa a concessões que favoreçam o momento (nunca será demais lembrar, para não idealizarmos a política institucional, que Michel Temer concorreu à mesma prefeitura de São Paulo como vice de Erundina em 2004). Convicções e concessões à parte, porém, o malabarismo que se precisa fazer com a idade da candidata é sinal da velhofobia e da misoginia presentes no imaginário e nas disputas políticas, mas também da sagacidade e da resiliência de uma mulher experiente e combativa, que espero que seja eleita no próximo domingo. E que, vice-prefeita, ela seja a rebelde radical, velha e jovem, de que esta cidade precisa desesperadamente.

Vote 50!

Erótica senil

Esse vai ser o tema da minha aula no curso Espelhos de Eros na obra de Hilda Hilst, oferecido on-line pelo Instituto Hilda Hilst de 6 de novembro a 18 de dezembro deste assombroso 2020.

Banner do curso Espelhos de Eros na obra de Hilda Hilst
Clique na imagem para mais informações

Cada aula vai abordar uma face da erótica hilstiana, e a aula introdutória será dada pela organizadora do curso, minha orientadora e a grande especialista brasileira em erotismo literário, Eliane Robert Moraes.

E, por falar em Hilda Hilst, vou também mediar a mesa de conversa com artistas que trabalharam adaptações da obra da escritora no colóquio Hilda Hilst 90, também virtual, de 27 a 29 de outubro. Mais informações aqui.