Pelo menos desde o século 14, na Europa, se tornaram comuns imagens que mostram o envelhecimento humano dividido em fases. Num mesmo quadro, diversas figuras representam momentos diferentes da vida de uma pessoa.
As sete idades da mulher (1544), de Hans Baldung Grien
É uma pessoa genérica essa que envelhece esquematicamente. Segundo a historiadora Shulamith Shahar, em capítulo do livro A History of Old Age (ed. The J. Paul Getty Museum, 2005), trata-se de “um homem ou mulher, com frequência das classes abastadas, sem preocupação aparente além de envelhecer, [que] vai da infância feliz à velhice saudável, alcançando um pico de prosperidade na meia-idade”. As fases retratadas não têm necessariamente a ver com critérios biológicos ou sociais; são, antes, uma referência à “identidade simbólica de cada fase da vida”.
Gravura francesa da primeira metade do século 19. Fonte: Time: Rhythm and Repose, de Marie-Louise von Franz (ed. Thames and Hudson, 1978)
O “pico de prosperidade” fica ainda mais visível nas representações das fases da vida como degraus de uma escada que sobe da infância e depois desce para a velhice. Esse esquema combina a ideia de progresso linear (o acúmulo dos anos em números crescentes, a sucessão de estados conectados, mas distintos e excludentes entre si) com a da velhice como decadência do corpo e aproximação da morte.
Reminiscências (1993), de Jim Benton (retirado do site do artista). No quadrinho final: “Bom, isso foi um saco.”
A representação do envelhecimento como um processo feito de fases prevalece até hoje. Quando diferenciamos “crianças”, “adolescentes”, “adultos” e “velhos” ou quando falamos em “crise da meia-idade”, por exemplo, continuamos montando esquemas de identidades simbólicas.
O vídeo em que Lima Duarte se dirige a Flávio Migliaccio, morto recentemente, tem vários pontos que merecem atenção. Um deles, talvez o que mais tenha comovido as pessoas que comentaram nas redes sociais, é sua declaração de que entende o suicídio do amigo, acrescentando: “Eu não tive a coragem que você teve”.
Não quero me deter nesse ponto, mas também não quero ser leviano com um tema tão sério, então só vou dizer: suicídio não tem exatamente a ver com coragem, e não faz bem a ninguém julgá-lo moralmente, seja execrando ou louvando a pessoa que morreu desse jeito. Caso você esteja pensando em se matar, procure ajuda profissional (o Centro de Valorização da Vida pode ser um bom começo). E para uma análise mais detida da repercussão da morte de Migliaccio, recomendo este texto do pesquisador Thiago Nagafuchi.
Feitos os parênteses, volto ao assunto do blog: Lima Duarte fala sobre a desesperança de sentir “o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68”, ou seja, a sensação de ter no horizonte o retorno de uma situação que, agora, ele não terá disposição para enfrentar. Juntando a isso a vulnerabilidade específica das pessoas maiores de 60 anos à covid-19 e o descaso social e político com essa parte da população, o ator conclui: “Eles promovem a devastação dos velhos”.
Um costume antipático
É um tema frequente nas representações de como a sociedade pode tratar os idosos: a fantasia utilitária de assassiná-los todos. Quem assistia TV nos anos 90 talvez se lembre do episódio do Dia do Arremesso, da Família Dinossauros. Nele, aprendemos que os dinossauros eram arremessados no Poço de Piche assim que completavam 72 anos. Um costume antigo, mas ainda vigente. (Dá pra assistir o episódio aqui.)
No livro Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores and Morals (1906), o cientista social estadunidense William Graham Sumner fez uma compilação de diversos povos, dos Tupi aos melanésios, que supostamente abreviariam a vida dos mais velhos de modos igualmente imaginativos (não vou citar nenhum pra não dar ideia…).
Alinhado ao darwinismo social da época, Sumner chama esses povos de “primitivos”, diferenciando-os de “nós”, para quem esse tipo de assassinato seria um costume “bastante antipático”. Ainda assim, matar os velhos não seria necessariamente algo cruel: “Os exemplos mostram que, para os povos nômades, o costume é necessário. Os velhos caem ao longo do caminho e morrem de exaustão. Matá-los dá na mesma, e talvez seja mais gentil”.
A vovó Zilda não vê a hora de ser atirada do abismo
Uma vez que os “civilizados” são apenas uma versão mais polida dos “primitivos”, “nós” também não estamos livres de ter que recorrer a esse know-how – se, eventualmente, como diz Sumner, “nos encontrarmos em face de circunstâncias primitivas e vivenciarmos a necessidade primeva, que se sobrepõe aos sentimentos da civilização”. Deixar os mais velhos viver seria, então, uma concessão possível de ser feita somente em tempos de paz, fartura, estabilidade.
Por que não devemos matar as pessoas velhas
Com essas premissas, é de se esperar que um tempo de pandemia, crise econômica e catástrofe ambiental não seja o melhor dos mundos para envelhecer.
Mas devemos nos perguntar: qual é o melhor dos mundos para envelhecer? Em algum momento esse mundo existiu? Ou o simulacro de apocalipse em que estamos vivendo apenas evidencia a precária concessão de bondade que nossa civilização faz aos mais velhos? Ainda: surpreende alguém que o projeto de genocida que ocupa a Presidência da República esteja mirando no bode expiatório da vez?
Semanas antes de seu vídeo viralizar na internet, e às vésperas de completar 90 anos, Lima Duarte comentou o pronunciamento de Bolsonaro do dia 24 de março (o do “histórico de atleta”, rs), quando o presidente ironizou as preocupações com a covid-19, minimizou o perigo da doença e defendeu que apenas os idosos se isolassem. “Ele quer que eu morra!”, concluiu o ator. Concordo. Como a História e a Família Dinossauros mostram, nós nunca estamos muito longe de um Poço de Piche, e matar ou deixar morrer um grupo de pessoas é, com frequência, uma resposta atraente a problemas que não queremos encarar.
Em A velhice (1970), Simone de Beauvoir comenta:
“As soluções práticas adotadas pelos primitivos para os problemas que os velhos representam são muito diversas: eles os matam, os deixam morrer, lhes concedem uma sobrevivência mínima, lhes garantem um fim confortável e até mesmo os honram e coroam com louros. Veremos que os povos chamados civilizados aplicam os mesmos tratamentos – apenas o assassinato é proibido, a menos que seja dissimulado”.
O assassinato civilizado que estamos cometendo ultimamente vem disfarçado de raciocínio lógico em falas como a do ministro Nelson Teich sobre sustentabilidade no sistema de saúde. Pressupondo que é inevitável que os mais velhos sejam preteridos durante a pandemia, não interessa muito se a notícia é dada com um levantar de ombros ou com uma tristeza trágica. O tamanho do abismo continua o mesmo.