O cachorro deu um pulinho e já chegou no chão ganindo, passou o dia mancando, depois ficou bem. Panguá fez 12 anos na semana passada. Continua jovial, com jeito quase de filhote. Eu chequei a patinha dele comentando: o corpo não acompanha, né, bebê?
Sempre lembro de um velho professor de Educação Artística (quando você tem 14 anos, um homem de 40 é muito velho) dizendo que ele só lembrava da idade que tinha quando se olhava no espelho ou quando precisava correr. Confrontado com limitações inesperadas ou um reflexo que não condizia com a autoimagem é que a idade se realizava. Fora isso, ele era sem tempo, eterno, e a eternidade é (por quê?) jovem.
Foi com as costas travadas há uma semana sem nenhum motivo especial, a vó de 90 anos indo e voltando de previsões de morte e a senioridade cronológica do meu cachorro virando mais um retorno solar que eu terminei de ler Meu irmão, eu mesmo, mais uma tour de force do incansável João Silvério Trevisan, a bicha-mor. É um livro bem fácil de descrever, mas indescritível no que realmente importa, e tem vários momentos de desabafo autobiográfico com relação aos sustos do envelhecimento. Como estas linhas que grifei, nas últimas páginas:
[…] conseguir decifrar parte desse mistério medonho que vejo diante do espelho todas as manhãs, cada dia mais velho e mais enigmático para mim mesmo.
O velho axioma da contracultura “não confie em ninguém com mais de 30 anos” se refere justamente a uma parte da vida em que a maioria das pessoas (é o que se espera e o que se exige) abdicam do mistério. O mistério não paga contas, não te deixa levantar de manhã e tomar banho e escovar os dentes e preencher outros requisitos que tradicionalmente fazem com que uma pessoa seja considerada adulta.
Neste primeiro quarto de século que acaba, a dissolução do trabalho tem exigido que crianças e pessoas velhas, sumariamente excluídas da vida econômica nos tempos mais regulados do capitalismo industrial, monetizem e sejam monetizadas. O Instagram e o Tik Tok, quando jogam o tempo livre no mercado de ações, extinguem o habitat natural do mistério, que precisa se refugiar em lugares mais inóspitos, tipo os esgotos do burn out. O rato feio e a pomba suja, afinal, ainda são triunfos gloriosos da natureza.
Minha avó moribunda tá encarando o mistério inevitável da morte. Trevisan, que é um desajustado exemplar, tem a sorte de um mistério crescente como companheiro de vida. O medo é adubo, o dejeto faz crescer. Meu cachorro late para o céu quando troveja. São lindos os versos finais do primeiro poema do Dao de jing:
玄之又玄
衆妙之門
mistério que se renova no mistério…
porta de todo deslumbramento
(tradução de Mario Bruno Sproviero)