Dois contos de Samuel Rawet

Contos do imigrante, de Samuel Rawet, começa com dois contos. O primeiro se chama “O profeta” e começa num navio que chega da Europa, tudo é presumido: um judeu velho, todo coberto de sobriedade, se encontra com parentes que não via desde a infância, só por fotos. Eles se abraçam, ficam alegres com a chegada do estranho. Ele não fica muito.

O livro é de 1956 e o cenário é uma vida marcada por pogroms e campos de extermínio, fome, tristeza. Isso do lado europeu, pelo menos. Depois de muito tempo e pouca conversa, o velho começa a entender melhor onde se meteu: “Soube ser recente a fortuna do irmão. Numa pausa contara-lhe os anos de luta e subúrbio, e triunfante, em gestos largos, concluía pela segurança atual. Mais que as outras sensações essa ecoou fundo. Concluiu ser impossível a afinidade, pois as experiências eram opostas. A sua, amarga. A outra, vitoriosa. E no mesmo intervalo de tempo!? Deus, meu Deus! As noites de insônia sucederam-se”.

Aqui, no Brasil, os judeus eram pouco mais do que meros brancos, podiam prosperar. O velho europeu, aliás, só tem de “profeta” o apelido que recebe sem entender, pois não fala a língua. Circunspecto, barba branca e comprida, ele não participa da piada, mas percebe que, quando chega, os risos param.

O segundo conto também é sobre uma velha recém-chegada. Ida, de “A prece”, acabou ficando tempo demais na casa dos que a acolheram e, acabado o interesse pelas histórias e pela figura pitoresca da hóspede, ela se mudou para um quarto de cortiço, sozinha com suas tralhas. “Ida sentia um cansaço inundar-lhe a alma. Filhos, já os tivera, marido também. De tudo, só o retrato ficou na parede. E ela.”

Os vizinhos são de uma simpatia indiferente, com exceção do grupo de crianças que acha a velha engraçada, esquisita, gosta de provocá-la para ouvir os xingos em outra língua, atiram pedras nela. Inevitavelmente, as crianças criam fantasias de bruxa para falar sobre os costumes bizarros de Ida e convencem os adultos de que algo muito errado acontece no quartinho da estrangeira. É então que uma multidão invade o aposento. A velha, rezando e chorando os seus mortos, só percebe a situação quando encontra os rostos constrangidos dos vizinhos que, em vez de rituais satânicos e bebês mortos, só toparam com uma velha triste. “Isso é reza lá da terra deles”, alguém sussurra, e todos saem em silêncio.


Começar o livro com um conto sobre um homem e outro sobre uma mulher deve ter parecido muito lógico a Samuel Rawet, porque o século 20 tinha dessas: “homem” e “mulher”, combinados, pareciam dar a compreensão do todo da humanidade. Personagens velhos, por sua vez, dão a compreensão de certa humanidade: a dos sobreviventes de uma experiência bem específica de privação e tortura. Acabada a urgência do terror, não tendo nada além de seu corpo e suas perdas, esses velhos vêm dar numa terra em tudo estrangeira, onde mesmo as pessoas próximas vivem uma espécie de universo paralelo. (Se escrevesse hoje, talvez Rawet tivesse vontade de colocar seus personagens em contato com os desterrados da nossa própria terra. Não são e não eram poucos. À época, no entanto, parece que isso não lhe ocorreu.)

Os velhos de “O profeta” e “A prece” acumulam, na idade, a tristeza e o medo persistentes em uma vida inteira. Nessas circunstâncias, talvez eles fossem velhos ainda que fossem jovens. Já o irmão vitorioso é o contrário: jovem ainda que velho. Porque o tempo é medido em quantidade, mas também pode ser valorado em qualidade.

Sonhos não envelhecem: lições de Luiza Erundina

Aos 85, quase 86 anos, Luiza Erundina é a parlamentar mais velha eleita em 2018. Só isso, no entanto, não seria tão digno de nota – 20,26% da Câmara Federal e 37,03% do Senado eleitos naquele ano eram compostos por pessoas idosas, o que poderia constituir a maior bancada do Congresso Nacional, segundo levantamento da Deutsche Welle. Tal prevalência, porém, não indica que os velhos estejam bem representados na política, apenas que os políticos são representativos de uma elite branca, patrimonialista e liderada por homens heterossexuais.

Aí sim é que Erundina se destaca, inevitavelmente: embora também seja branca, é mulher, algo incomum na política institucionalmente machista do Brasil. Além disso, na sua longa carreira, nunca performou a heterossexualidade que se espera de mulheres de sua geração. “Eu me casei com a política”, ela diz, professando uma missão que transcende as expectativas burguesas de uma vida privada (impeditivas, para as mulheres, de ter vida pública). E, mais impressionante ainda, Erundina é velha – e longeva.

A questão etária ganhou destaque na sua trajetória política em 2016, quando concorreu à prefeitura de São Paulo com o slogan “Sonhos não envelhecem”. O verso da canção “Clube da esquina nº 2” virou uma espécie de mantra da candidata também em 2018 e agora, em 2020.

Transformando em potência o que se percebe socialmente como desvantagem, ela tem buscado articular em seu discurso os signos da juventude e da velhice, tanto como estágios da vida humana, complementares e igualmente dignos, quanto como metáforas contraditórias da renovação e da obsolescência na política.

Marie Claire. Sobre as críticas à sua idade: dizem por exemplo que passou da hora da senhora se aposentar da política, que deveria ceder lugar para gente mais nova. Qual é sua resposta para esse tipo de comentário?
Luiza Erundina. Que se danem! Estou vivendo meu tempo, minha saúde e inteligência, minha experiência. Estou fazendo mal para alguém? Não estou. E quero que mulheres com a minha idade também se sintam assim, que sejam contagiadas pela minha vivência e vontade de seguir trabalhando. E, para aqueles aqueles que se sentem incomodados, desejo que tenham a sorte de chegar onde cheguei com a energia e convicção que tenho. Sabe, se você perde seu projeto de vida, tudo perde o sentido. E meu projeto de vida não termina no meu tempo. Meu projeto é sonhar com outro futuro. Não quero só mudar São Paulo e Brasil, quero mudar o mundo. O meu sonho, de uma sociedade socialista, fraterna e igualitária, infelizmente não vai acontecer no meu tempo, tenho consciência disso. Mas se eu não fizer minha parte agora, esse modelo de sociedade não vai acontecer nunca. A velhice não é doença, não é defeito, a velhice não impede o sonho. Portanto o sonho que me move, em relação às transformações que a sociedade precisa, não envelheceu.
Material da campanha de 2016

Contraditória também tem sido, talvez de um jeito bem mais problemático, a campanha de 2020. Se em 2016 o partido enfatizou a face combativa da vida pública de Erundina, esta ano os memes tendem a se apropriar de sua imagem de mulher velha para enquadrá-la justamente na matriz heterossexual em que antes ela não parecia se encaixar. Em outras palavras, o marketing digital transformou Erundina, de uma rebelde boss bitch sapatão, em uma doce vovó caseira.

O quanto a candidata aprova essa estratégia não sabemos. Na contramão desse tom, Erundina disse, em vídeo veiculado às vésperas do primeiro turno: “Eu faço um apelo aos companheiros e às companheiras da minha geração: não se deixem ser tratados com infantilidade, isso não é uma forma respeitosa de se tratar um idoso! Meu apelo é pros 1.800.000 idosos que essa cidade tem, e que são uma força viva, humana, enorme!”.

As imagens da Erundina vovó aparecem nas redes sociais de Guilherme Boulos, mas não nas de sua vice. Sendo uma política bastante profissional, é de se imaginar que ela não seja totalmente avessa a concessões que favoreçam o momento (nunca será demais lembrar, para não idealizarmos a política institucional, que Michel Temer concorreu à mesma prefeitura de São Paulo como vice de Erundina em 2004). Convicções e concessões à parte, porém, o malabarismo que se precisa fazer com a idade da candidata é sinal da velhofobia e da misoginia presentes no imaginário e nas disputas políticas, mas também da sagacidade e da resiliência de uma mulher experiente e combativa, que espero que seja eleita no próximo domingo. E que, vice-prefeita, ela seja a rebelde radical, velha e jovem, de que esta cidade precisa desesperadamente.

Vote 50!

Erótica senil

Esse vai ser o tema da minha aula no curso Espelhos de Eros na obra de Hilda Hilst, oferecido on-line pelo Instituto Hilda Hilst de 6 de novembro a 18 de dezembro deste assombroso 2020.

Banner do curso Espelhos de Eros na obra de Hilda Hilst
Clique na imagem para mais informações

Cada aula vai abordar uma face da erótica hilstiana, e a aula introdutória será dada pela organizadora do curso, minha orientadora e a grande especialista brasileira em erotismo literário, Eliane Robert Moraes.

E, por falar em Hilda Hilst, vou também mediar a mesa de conversa com artistas que trabalharam adaptações da obra da escritora no colóquio Hilda Hilst 90, também virtual, de 27 a 29 de outubro. Mais informações aqui.

A heterossexualidade

Cena de Estou pensando em acabar com tudo (I'm thinking of ending things), de Charlie Kaufman
Cena de Estou pensando em acabar com tudo (I’m thinking of ending things), de Charlie Kaufman, que acaba de estrear

É um filme sobre as mulheres que não envelhecem, que ficam presas na juventude porque foram impedidas de continuar a viagem ou de voltar pra casa. E sobre os homens que envelhecem mal, rancorosos, inúteis e louvados ou cheios de raiva mansa imprevisível, masculina. E sobre os homens e mulheres que envelhecem, apenas, e já é difícil o bastante.

(Tem dois tipos de tempo: o que não passa, círculo no inferno, e o outro, “o sol sobe e desce feito uma puta cansada” e o movimento não vai bem pra frente, mas pelo menos não fica em círculos.)

Christina's World (1948), de Andrew Wyeth
Christina’s World (1948), de Andrew Wyeth

Um filme sobre ser levada para onde não se quer ir. Sobre se tornar o que não estava prometido, mas era inevitável. Eu sempre esqueço onde li que “um homem que morreu aos 70 anos terá sido a vida inteira, em cada momento, um homem que morreu aos 70 anos”. E uma mulher que morreu aos vinte e poucos.

Outro filme que tem muito a ver com este: O iluminado. Mas no de Kubrick quase ninguém envelhece mesmo. Tem a neve, a loucura, a misoginia, mas não tem aquele segundo tipo de tempo, só o primeiro. Tem o labirinto. O hotel, os anos e as famílias também são labirínticas. Quem consegue escapar não faz mais parte do filme.

Estou pensando em acabar com tudo divide e ilustra os tempos.

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Duas velhices: a realista, que acontece de verdade, e a que só existe nas perucas grisalhas mal colocadas e nas maquiagens de rugas exageradas.

“Tudo tem que morrer”, a personagem conclui, imaginando que só os humanos saibam disso. Os outros animais vivem no presente. Por isso, ela diz, é que os humanos inventaram a esperança.

Cartaz de Estou pensando em acabar com tudo.

Talvez também por isso a gente se interesse mais na nossa velhice do que na dos outros bichos. Eles vivem no tempo circular. E a gente quer acreditar que estamos nos movimentando. Pra frente, esperamos.

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Mas a velhice não é acúmulo e progresso. Não no filme, pelo menos. “O menino é pai do homem”, a personagem lembra. Quando acontece, a velhice já estava lá durante a vida inteira, tipo um destino. Mesmo quando ela acontece, não deixa de ser um círculo no inferno, a maldição do casal heterossexual, filho simulando o pai e casando com a mãe. A maldição da família, da masculinidade e da feminilidade, de ser mulher — porque a menina, afinal, não é mãe da mulher. A maldição da primeira lei de Newton e de todas as outras leis, inclusive das que impedem que as mulheres façam suas próprias viagens. E envelheçam, apenas.

The Kuerners (1971), de Andrew Wyeth

PS. Mudei o título do post, que originalmente era o título do filme. Logo no comecinho, a personagem cita Bette Davis: “Envelhecer não é para maricas”. Ainda vou escrever mais sobre isso…

Será que vai demorar muito?

Em obras de arte, um velho ou uma velha não é nunca uma pessoa, mas às vezes não chega nem a ser a representação de uma pessoa. Quer dizer: às vezes, é só um velho ou uma velha mesmo, ou seja, a ideia da velhice formulada com caraterísticas de pessoa.

Dificilmente vamos encontrar alguém assim na realidade, a menos que olhemos pra alguém e abstraiamos tudo que esse alguém pode ter de parecido com a gente. Assim se dão os preconceitos, assim funciona, em nível individual, o racismo: você não vê gente, só uma ideia de gente. E as ideias são menos complexas e bem menos dinâmicas.

Esfinge no cemitério

Em arte, apesar de os preconceitos também existirem, e como existem!, a ideia metamorfoseada em pessoa significa, principalmente, que o personagem vai ser um esteriótipo, um arquétipo, um tipo. No curta Morte. (dir. José Roberto Torero, 2002), isso são os velhos interpretados por Paulo José e Laura Cardoso.

Sem nome

Tanto é assim que nem nome eles têm. Ele e Ela são duas figuras que ficam no meio do caminho entre o corpo e a pessoa. Usam roupas adequadas à sua função de Velho e Velha que, tanto na história quanto na escolha dos atores, ocupam um lugar social: são brancos, de uma classe média confortável e possivelmente estudada. Incorporam, na polidez e na precaução, uma vontade civilizacional.

Que não se sente confortável com a velhice. Arranjou pra ela o lugar do aposentado, do vovô respeitável e bem-humorado de bengala e suspensório, da vovó bonitinha e arrumadinha e dedicada.

Ele e Ela se sentem bem nesse papel. E, em cada segmento do curto do curto filme, visitam algum preparativo para o ritual igualmente ideal da morte: um velório com flores, música, igreja; um caixão bonito de madeira envernizada; roupas de festa no defunto; um túmulo bem cuidado e de bom gosto.

Assim, sim

Nessa utopia burguesa, nada fede ou borbulha, nenhum líquido escorre, ninguém é rude ou desagradável. E o curta escolhe bem o tom de humor leve, com piadas inofensivas e batidas que acompanham os personagens na preparação de seus próprios funerais.

“Eu não gosto de dar trabalho”, diz Ela enquanto encaixota seus bens e se mostra a velha ideal da família de bem.

O último segmento do filme, spoiler alert, também acerta na quebra de tom. Da comédia de costumes passamos ao inferno melancólico que é a sala de espera da morte, outra função da velhice burguesa, uma fase da vida em que todas as funções foram despedidas. Com tudo pronto e cuidado, Ele e Ela não têm o que fazer além de esperar. “Essa espera é que dá agonia”, Ela fala. “Esse é o problema”, Ele responde.

E agora?