A heterossexualidade

Cena de Estou pensando em acabar com tudo (I'm thinking of ending things), de Charlie Kaufman
Cena de Estou pensando em acabar com tudo (I’m thinking of ending things), de Charlie Kaufman, que acaba de estrear

É um filme sobre as mulheres que não envelhecem, que ficam presas na juventude porque foram impedidas de continuar a viagem ou de voltar pra casa. E sobre os homens que envelhecem mal, rancorosos, inúteis e louvados ou cheios de raiva mansa imprevisível, masculina. E sobre os homens e mulheres que envelhecem, apenas, e já é difícil o bastante.

(Tem dois tipos de tempo: o que não passa, círculo no inferno, e o outro, “o sol sobe e desce feito uma puta cansada” e o movimento não vai bem pra frente, mas pelo menos não fica em círculos.)

Christina's World (1948), de Andrew Wyeth
Christina’s World (1948), de Andrew Wyeth

Um filme sobre ser levada para onde não se quer ir. Sobre se tornar o que não estava prometido, mas era inevitável. Eu sempre esqueço onde li que “um homem que morreu aos 70 anos terá sido a vida inteira, em cada momento, um homem que morreu aos 70 anos”. E uma mulher que morreu aos vinte e poucos.

Outro filme que tem muito a ver com este: O iluminado. Mas no de Kubrick quase ninguém envelhece mesmo. Tem a neve, a loucura, a misoginia, mas não tem aquele segundo tipo de tempo, só o primeiro. Tem o labirinto. O hotel, os anos e as famílias também são labirínticas. Quem consegue escapar não faz mais parte do filme.

Estou pensando em acabar com tudo divide e ilustra os tempos.

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Duas velhices: a realista, que acontece de verdade, e a que só existe nas perucas grisalhas mal colocadas e nas maquiagens de rugas exageradas.

“Tudo tem que morrer”, a personagem conclui, imaginando que só os humanos saibam disso. Os outros animais vivem no presente. Por isso, ela diz, é que os humanos inventaram a esperança.

Cartaz de Estou pensando em acabar com tudo.

Talvez também por isso a gente se interesse mais na nossa velhice do que na dos outros bichos. Eles vivem no tempo circular. E a gente quer acreditar que estamos nos movimentando. Pra frente, esperamos.

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Mas a velhice não é acúmulo e progresso. Não no filme, pelo menos. “O menino é pai do homem”, a personagem lembra. Quando acontece, a velhice já estava lá durante a vida inteira, tipo um destino. Mesmo quando ela acontece, não deixa de ser um círculo no inferno, a maldição do casal heterossexual, filho simulando o pai e casando com a mãe. A maldição da família, da masculinidade e da feminilidade, de ser mulher — porque a menina, afinal, não é mãe da mulher. A maldição da primeira lei de Newton e de todas as outras leis, inclusive das que impedem que as mulheres façam suas próprias viagens. E envelheçam, apenas.

The Kuerners (1971), de Andrew Wyeth

PS. Mudei o título do post, que originalmente era o título do filme. Logo no comecinho, a personagem cita Bette Davis: “Envelhecer não é para maricas”. Ainda vou escrever mais sobre isso…