Será que vai demorar muito?

Em obras de arte, um velho ou uma velha não é nunca uma pessoa, mas às vezes não chega nem a ser a representação de uma pessoa. Quer dizer: às vezes, é só um velho ou uma velha mesmo, ou seja, a ideia da velhice formulada com caraterísticas de pessoa.

Dificilmente vamos encontrar alguém assim na realidade, a menos que olhemos pra alguém e abstraiamos tudo que esse alguém pode ter de parecido com a gente. Assim se dão os preconceitos, assim funciona, em nível individual, o racismo: você não vê gente, só uma ideia de gente. E as ideias são menos complexas e bem menos dinâmicas.

Esfinge no cemitério

Em arte, apesar de os preconceitos também existirem, e como existem!, a ideia metamorfoseada em pessoa significa, principalmente, que o personagem vai ser um esteriótipo, um arquétipo, um tipo. No curta Morte. (dir. José Roberto Torero, 2002), isso são os velhos interpretados por Paulo José e Laura Cardoso.

Sem nome

Tanto é assim que nem nome eles têm. Ele e Ela são duas figuras que ficam no meio do caminho entre o corpo e a pessoa. Usam roupas adequadas à sua função de Velho e Velha que, tanto na história quanto na escolha dos atores, ocupam um lugar social: são brancos, de uma classe média confortável e possivelmente estudada. Incorporam, na polidez e na precaução, uma vontade civilizacional.

Que não se sente confortável com a velhice. Arranjou pra ela o lugar do aposentado, do vovô respeitável e bem-humorado de bengala e suspensório, da vovó bonitinha e arrumadinha e dedicada.

Ele e Ela se sentem bem nesse papel. E, em cada segmento do curto do curto filme, visitam algum preparativo para o ritual igualmente ideal da morte: um velório com flores, música, igreja; um caixão bonito de madeira envernizada; roupas de festa no defunto; um túmulo bem cuidado e de bom gosto.

Assim, sim

Nessa utopia burguesa, nada fede ou borbulha, nenhum líquido escorre, ninguém é rude ou desagradável. E o curta escolhe bem o tom de humor leve, com piadas inofensivas e batidas que acompanham os personagens na preparação de seus próprios funerais.

“Eu não gosto de dar trabalho”, diz Ela enquanto encaixota seus bens e se mostra a velha ideal da família de bem.

O último segmento do filme, spoiler alert, também acerta na quebra de tom. Da comédia de costumes passamos ao inferno melancólico que é a sala de espera da morte, outra função da velhice burguesa, uma fase da vida em que todas as funções foram despedidas. Com tudo pronto e cuidado, Ele e Ela não têm o que fazer além de esperar. “Essa espera é que dá agonia”, Ela fala. “Esse é o problema”, Ele responde.

E agora?