O quinto episódio da sétima temporada de Black Mirror (possível alerta de spoiler) talvez seja, desde o começo da série, o que mais põe em cena a velhice, e só por causa dele eu percebi o quanto Black Mirror foca em em crianças, jovens, adultos, mas quase nunca em velhos.
É uma coisa que tenho pensado: no admirável e temível mundo novo que a revolução digital põs em movimento, pouco se ficcionaliza a velhice. Isso quando o mundo passa por uma transição demográfica que é particularmente visível em países como o Brasil. A população envelheceu, o caos climático se instaurou, a inteligência artificial veio pra ficar e tudo isso está razoavelmente azeitado. Há robôs e implantes e ar-condicionado sendo criados e comercializados para os velhos, que também vão começar a trabalhar cada vez mais e por mais tempo, dando início ao que, de vez em quando na mídia, se chama com entusiasmo cínico de “economia prateada”. Etc. etc. Mas os produtos culturais (por falta de termo melhor) que reimaginam o nosso presente distópico raramente focam na velhice. Ou é impressão minha?
Pra Black Mirror, pelo menos, a impressão serve. “San Junipero”, na terceira temporada, é uma das exceções, mas ali a tecnologia é o que ela seria nos nossos melhores e menos inspirados sonhos, mantendo vivas, jovens e saudáveis as nossas consciências enfim libertas dos corpos decrépitos. As duas personagens velhas são interpretadas, na maior parte do episódio, por atrizes jovens, avatares dos anos dourados das mulheres que, fora da nuvem, só vivem por cuidado paliativo.
Um filme de 2009 do Bruce Willis tem um plot análogo. Assisti uma vez faz muito tempo e achei legal. No RottenTomatoes a aprovação crítica é de 37%. Mas o Bruce Willis sempre vale a pena.
O personagem dele é um agente do FBI (rs) que vive num mundo em que as pessoas ficam dentro de casa, num casulo de realidade aumentada, enquanto vivem por procuração por meio de robôs que saem por aí experimentando as coisas, fazendo os afazeres. Isso faz com que todo mundo esteja seguro dentro de casa e, se o robô se envolve num acidente, a pessoa que está vivendo por meio dele segue intacta e só precisa comprar outro robô pra voltar à vida pública. Obviamente, todo mundo escolhe o robô mais gostoso possível pra se representar na sociedade. Igual os avatares de “San Junipero” (e a semelhança dos enredos para por aí). Obviamente, podendo escolher, todo mundo é jovem. Quem não seria?
Muitas interseções queer, raciais, capacitistas etc. nessa premissa. Quem escolheria ser gay? E trans? E não branco? E PCD? E gordo? A lista não termina. Quem escolheria ser corcunda, gago, ter pau pequeno? E velho? A resposta talvez não seja tão óbvia. Talvez seja.
Mas voltando pra “Eulogy”, o episódio da nova temporada: ele se destaca porque o personagem velho é velho mesmo, e mais ainda: é analógico. De repente chega uma bugiganga na casa dele que vai pedir que ele digitalize as memórias e as fotos guardadas em caixas de sapato no sótão. A bugiganga pede lembranças do fim dos anos 1980, e ele diz: “Naquela época não existia nuvem”. Nada sofreu upload.
O Paul Gianatti tem só 57 anos, mas, pro que importa, o personagem dele já é velho, ao menos no sentido de que vive um mundo que está deixando de existir. É mais velho ainda porque, diferente das velhas de “San Junipero”, ele não quer se transportar para a utopia da juventude. O episódio começa com ele cuidando das rosas de um jardim e se machucando com o dedo no espinho. Como faziam os fenícios.
Isso me fez pensar, millennial em crise de meia idade que estou, que, dentro de algumas décadas, em o mundo não acabando etc., vão morrer as pessoas que conheceram o planeta antigo, sem lixo espacial nem sinal de Wi-Fi. Isso, lógico, sem considerar a grande parcela do mundo que até agora não foi colonizada pelo chip. E sem contar os velhos que farão o upgrade pra nuvem. Que, aliás, é um amontoado de trombolhos pesadíssimos, tão distantes dos nossos dedos quanto o algodão frio que passeia sobre as nossas cabeças num dia bonito.