Do armário da artista saem muitas de suas memórias, vestidos que foram usados em performances grandiosas, iluminadas, em que a diva do palco é uma espécie de corpo arquetípico, ideal.
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Em Memória e sociedade: lembranças de velhos (1979), Ecléa Bosi defende que a memória é a “função social” dos velhos. “É o momento de desempenhar a alta função da lembrança. Não porque as sensações se enfraquecem, mas porque o interesse se desloca, as reflexões seguem outra linha e se dobram sobre a quintessência do vivido.” Teoricamente o velho, desobrigado das atividades cotidianas que ocupam os adultos, se voltaria para o passado para realizar “a religiosa função de unir o começo ao fim”.
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Phedra de Córdoba (1938-2016) relembra ao mesmo tempo que revive. Suas mãos reencenam os movimentos que ela fazia no palco.
Mas a reencenação é uma nova encenação. Não se trata de uma reprise ou uma cópia de segunda mão. O filme Phedra (2008), de Claudia Priscilla, explicita isso no salto do quarto da atriz para sua performance no palco, nos cortes que faz entre os momentos em que Phedra conta suas histórias e aqueles em que ela dança, canta, representa e toca castanholas.
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Dois momentos do vestido: guardado, ele é passado; no corpo, se faz presente. “Eu tinha um ciclone dentro de mim, como até hoje eu tenho”, diz Phedra. As memórias podem ser vestidas a qualquer momento, mas o corpo que as veste tem uma força contínua.
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Hilda Hilst, em Estar sendo. Ter sido: “revivir es vivir más”. Repetição é acúmulo, potência, intensidade.
Phedra pode ser visto no LGBTFLIX, plataforma de cinema que o #VoteLGBT preparou para a gente ver filmes durante a quarentena. Clique aqui para assistir.
Pelo menos desde o século 14, na Europa, se tornaram comuns imagens que mostram o envelhecimento humano dividido em fases. Num mesmo quadro, diversas figuras representam momentos diferentes da vida de uma pessoa.
É uma pessoa genérica essa que envelhece esquematicamente. Segundo a historiadora Shulamith Shahar, em capítulo do livro A History of Old Age (ed. The J. Paul Getty Museum, 2005), trata-se de “um homem ou mulher, com frequência das classes abastadas, sem preocupação aparente além de envelhecer, [que] vai da infância feliz à velhice saudável, alcançando um pico de prosperidade na meia-idade”. As fases retratadas não têm necessariamente a ver com critérios biológicos ou sociais; são, antes, uma referência à “identidade simbólica de cada fase da vida”.
O “pico de prosperidade” fica ainda mais visível nas representações das fases da vida como degraus de uma escada que sobe da infância e depois desce para a velhice. Esse esquema combina a ideia de progresso linear (o acúmulo dos anos em números crescentes, a sucessão de estados conectados, mas distintos e excludentes entre si) com a da velhice como decadência do corpo e aproximação da morte.
A representação do envelhecimento como um processo feito de fases prevalece até hoje. Quando diferenciamos “crianças”, “adolescentes”, “adultos” e “velhos” ou quando falamos em “crise da meia-idade”, por exemplo, continuamos montando esquemas de identidades simbólicas.
É a primeira vez que eu acompanho, do começo ao presente e com plena responsabilidade, a vida de um cachorro. O Panguá nasceu dia 25 de dezembro de 2012 em Itajubá, no sul de Minas. Capricorniano com Sol conjunto a Plutão. Lua em Gêmeos.
Hoje, no retorno da consulta, a veterinária informou enquanto apalpava o meu cachorro que a gastrite parece ter sumido. Diz que é um perigo pros caninos, porque logo vira úlcera e o cachorro morre de repente. Mas mesmo assim é melhor parar de dar o remédio pro estômago, já que, “na idade dele”, o remédio pode afetar os rins.
“Remédio você sabe como é, né, concerta uma coisa e desarruma outra.” O Panguá todo serelepe no consultório pequeno parecia desarrumado tanto quanto sempre. A veterinária ainda identificou que a dor na coluna tinha melhorado e agora era só uma dorzinha.
Respirando fundo debaixo da máscara improvisada, eu já sentia a dor na carteira quando perguntei: ok, então como tratamos isso? Dou mais remédio? A veterinária sentou na cadeira e, por baixo da máscara profissional, sorriu:
“Não tem muito o que fazer. Na idade dele é assim mesmo: um bico de papagaio, um desgaste do osso, ainda mais nessa parte que sente mais o peso. Aos poucos esses problemas vão aparecendo”.
Na hora me veio a imagem do Panguá se atirando desembestado pelo corredor de casa, pulando degraus, derrapando e ameaçando me morder o saco. Tudo de brincadeira, lógico. Na idade dele, mesmo se cansando mais rápido que antes, ele brinca bastante.
Essa coisa de dizer que doença é coisa de velho é só meia verdade. Tem gente que já nasce doente. Às vezes, nasce tão doente que mal nasce e já morre. Quem nasce e sobrevive vai crescendo, vai virando outra coisa, a mesma pessoa mas de outro jeito, e ninguém passa pela vida sem morrer. Quanto mais tempo você fica no corpo, mais esse corpo tem chances de adoecer, de estragar, de pifar.
Pra cachorros, a regra é a mesma. Em 2020 o Panguá vai fazer oito anos. Ainda é novo, mas também já é velho. Acho que minha carteira vai doer mais vezes enquanto estivermos juntos.
Por sorte, a veterinária é gente boa. Na saída ela se despede elogiando o meu cachorro e fala que ficou feliz por ver ele tão bem. Usa com ele a mesma voz boba que usamos com nenéns e que, no caso dos cães, serve pra vida toda. Velhinho, o Panguá saiu pra rua todo feliz, saltitando na calçada, e encheu de mijo o primeiro poste que encontrou.
Existem vários tipos de solidão. Talvez cada pessoa, sozinha, encontre um deles.
A escritora Miriam Alves contou na revista Piauí sobre o isolamento social durante o processo de criação de seu romance mais recente, Maréia: “A reclusão também me mostrou que a solidão, quando desejada, pode ser uma aventura transgressora numa sociedade que valoriza tanto o estar com o outro, ainda que em circunstâncias desagradáveis”.
Cinema mudo
Irene é sozinha. Ela mora numa casa ampla, afastada do barulho urbano, e faz as coisas sem pressa: escolhe o feijão, acende o cigarro, caminha pela rua vazia para comprar mantimentos. O curta-metragem que leva seu nome, dirigido por Patrícia Galucci e Victor Nascimento e lançado em 2011, invade a vida de Irene no fim de semana que ela recebe a visita da neta adolescente, que traz uma amiga para brincar na piscina e pernoitar.
As meninas são barulhentas e agitadas, correm pela casa aos risinhos, cochicham, se cutucam, se fazem cócegas. Mal olham para a velha, que cozinha o almoço e lava a louça como se esses dois núcleos pertencessem a filmes diferentes. Só de vez em quando é que Irene (ela mesma um núcleo inteiro) estende o olhar para além de seu filme e observa, atenta, sem interferir, o que se passa no filme das meninas.
Aos poucos vemos que a incomunicabilidade não tem nada de triste, e talvez nem se trate de falta de consideração da neta com relação à avó. A distância acontece naturalmente, ninguém força a barra para suprimi-la. Na falta de conexão entre os dois filmes que dividem o espaço da casa, mesmo o irritante ruído de fundo dos risinhos das meninas é uma inconveniência leve, que não vai durar mais que o fim de semana. E, uma vez que a câmera acompanha apenas a avó silenciosa, os diálogos entre as adolescentes se perdem na distância, não despertam interesse. É quase um filme mudo. É o filme de Irene, afinal.
Banho
O que fica cada vez mais evidente é que a velha gosta muito de ficar sozinha. Seu rosto melancólico forma sorrisos sutis quando ela aprecia algo com calma – o contato dos pés com a água da piscina, a visão dos corpos molhados e seminus das meninas, a masturbação durante o banho de banheira (cena raríssima no cinema: uma mulher velha, sem roupa, se masturbando, sem nenhuma ridicularização do prazer dela. Salva de palmas para a diretora, o diretor e a atriz Iná de Carvalho).
Toda essa umidade das cenas faz transbordar o erotismo do filme, que poderia estar contido no lesbianismo clichê entre ninfetas ou na perversidade possível do incesto entre avó e neta, mas se realiza, de modo inesperadamente original, no mais solitário dos prazeres. A longa cena da siririca de Irene deixa mais literal o que percebemos ao longo do filme: o prazer com que a personagem vive a solidão.
Enquanto o filme das meninas se desenvolve numa temporalidade que esperamos típica da adolescência, regida pela frivolidade e pelo encanto das primeiras vezes, o filme de Irene tem um tempo decantado, no qual mesmo a visão do colo nu da amiga da neta, apesar de inédita, adquire ares de rememoração. O curta-metragem, no entanto, encena esses lugares-comuns sem apelar para outro clichê: o da solidão triste da idosa. Isso dá também para nós, espectadores, a perspectiva de uma solidão alegre e prazerosa – aquela que pode ser uma aventura transgressora, como disse Miriam Alves.
Irene pode ser visto no LGBTFLIX, plataforma de cinema que o VoteLGBT preparou para a gente ver filmes durante a quarentena. Clique aqui para assistir.
Quando as pessoas descobrem que eu estudo a obra da Hilda Hilst, muitas vezes me perguntam: por onde começar a ler? A resposta varia muito. Hoje, vamos começar pelo fim.
Ou um dos fins. Estar sendo. Ter sido foi o último livro inédito publicado enquanto Hilda ainda estava viva. A primeira edição (que continua sendo a melhor) é de 1997, da editora Nankin. Depois foi reeditado pela Globo nos anos 2000 (uma edição infelizmente cheia de erros que atrapalham um pouco a leitura) e, mais recentemente, no volume Da prosa, da Companhia das Letras.
Como quase todos os livros da Hilda, Estar sendo. Ter sido é esquisito e não pode ser encaixado sem problemas em um gênero literário. É um dos textos mais extensos da autora, mas tem o mesmo compasso fragmentado do resto da sua prosa. Quer dizer: a história vai engasgando, dando cavalos de pau, e o texto em prosa vai sendo interrompido de tudo quanto é jeito: com poemas, diálogos teatrais, desenhos, espaços em branco, referências bibliográficas, receitas de drinques (a quem se interessar) e receitas de suicídio (tomem cuidado!).
Mas não são meros experimentos formais, pelo menos não no sentido de que eles pudessem adquirir um protagonismo com relação à história. Em princípio, estamos diante de uma espécie de romance que nos coloca dentro da cabeça de Vittorio, um escritor velho e ranzinza que briga com a esposa e se muda com o irmão e o filho para uma casa na praia, onde passa os dias entre cachorros, gansos e livros.
Deus no meu buraco
Como os velhos são em geral considerados velhos, não pessoas, eles costumam ser encaixados em estereótipos mais ou menos constantes na televisão, na literatura, nas nossas conversas cotidianas. Quantas vezes a gente se refere a um velho ou uma velha no diminutivo, como velhinhos fofos? Pois Vittorio está mais pro oposto do “velhinho”, num outro estereótipo frequente: o do velho rabugento, desagradável, inconveniente e amargo.
duas criadinhas passaram rente a mim, olharam as pantufas e curvaram-se de tanto rir. ouvi as palavras “velho”, “gozado”, “sempre bêbado”. pensei tolas, xerecas fedidas e sempre criadinhas. pensei azedo também sobre a vida. pensei “triste, velhice”, “caralho murcho”, pensei “deus” e toda a asseclagem ao redor dele, chupando-lhe os dedões do pé.
A tristeza é uma das principais palavras do texto, mas ela nunca se resume à resignação. Vittorio está furioso – com a vida, com seu corpo, com Deus. Em seus textos, Hilda Hilst vira e mexe briga com Deus, se revolta com Sua ausência e, quando O encontra, acusa Seu sadismo. Para um final acerto de contas, Vittorio procura Deus por toda parte:
Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo onde seo Vittorio, onde? no meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita. não fala assim, seo Vittorio, é pecado mortal. deus no meu buraco, é pecado mortal? ah, não é não, Rosinha, deus gosta de tudo, de tudo o que criou, nada é triste, nem escuro, nem amerdalhado, nem fede à bosta nem a malvavisco, tudo é bonito porque vem de deus, viu Rosinha? ele é um dorso sem cara, um chifre negro, um olho azul azul que lindo, seo Vittorio…
Nesse acerto de contas, o que Vittorio parece sentir, mais do que tudo, é pressa. A vertigem do texto encena isso. A proximidade da morte, muito mais palpável na velhice do que em outras fases da vida (embora a morte, vocês sabem, esteja sempre próxima), faz com que tudo pareça urgente e o tempo de vida, para qualquer coisa, não seja suficiente.
afinal fomos feitos pra quê, hen? afinal você aprende aprende, quando está tudo pertinho da compreensão, você só sabe que vai morrer. que judiaria! que terror! o homem todo aprumado diz de repente: quase que já sei, e aí aquela explosão, aquele vômito, alguns estertores, babas, alguns coices, um jato de excremento e pssss… o homem foi-se.
Que se dane
Mas o fim da vida e a chegada da morte também despertam a vontade de, uma última vez, experimentar coisas novas. “[…] deve ser bom na velhice isso de alguém te enrabar”, diz Vittorio. O texto bizarro de Hilda Hilst, talvez um dos mais experimentais de sua extensa obra, foi anunciado pela escritora como sua despedida definitiva da literatura: “É deslumbrante tudo o que escrevi, mas já escrevi tudo o que devia”, disse ela numa entrevista de 1998. E continuou:
Como eu disse antes, eu já escrevi coisas deslumbrantes. Quem não entender, que se dane! Não tenho mais nada a ver com isso. Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Não entendo por que fui nascer aqui na Terra. Com raríssimas exceções, não tenho nada a ver com este mundo.
A desistência (e, em casos como esse, a banana dada ao mundo) é mais um desses traços frequentes em discursos de velhos. E é frequente também que, como em Vittorio, ela ande passo a passo com o desejo de que tudo se acabe, a pressa para fazer tudo a tempo e o desejo de que tudo continue, numa contradição que só é aparente para quem nunca encarou a finitude.
Depois dessa entrevista, a gente sabe, Hilda seguiu escrevendo. Em 2004 ela morreu sem ter lançado nenhum outro livro, e até hoje apareceram apenas alguns inéditos curtos, o que leva a crer que Estar sendo. Ter sido tenha sido, de fato, sua carta de despedida. Para entrar nessa obra complexa, com certeza é uma boa porta. Mas, concordo com Hilda, todas as outras portas servem igualmente. São todas, cada uma à sua maneira, deslumbrantes.