“Estar sendo. Ter sido”, de Hilda Hilst

Quando as pessoas descobrem que eu estudo a obra da Hilda Hilst, muitas vezes me perguntam: por onde começar a ler? A resposta varia muito. Hoje, vamos começar pelo fim.

Escritora Hilda Hilst. Foto em preto e branco. Ela é uma mulher velha, de cabelos desgrenhados, usa um roupão florido aberto e, por baixo, uma camiseta estampada "Eu amo vira-latas". Ela está sorridente, sentada de jeito confortável, segurando um cigarro com a mão direita.
Hilda Hilst em 1997. Foto: Éder Chiodetto

Ou um dos fins. Estar sendo. Ter sido foi o último livro inédito publicado enquanto Hilda ainda estava viva. A primeira edição (que continua sendo a melhor) é de 1997, da editora Nankin. Depois foi reeditado pela Globo nos anos 2000 (uma edição infelizmente cheia de erros que atrapalham um pouco a leitura) e, mais recentemente, no volume Da prosa, da Companhia das Letras.

Como quase todos os livros da Hilda, Estar sendo. Ter sido é esquisito e não pode ser encaixado sem problemas em um gênero literário. É um dos textos mais extensos da autora, mas tem o mesmo compasso fragmentado do resto da sua prosa. Quer dizer: a história vai engasgando, dando cavalos de pau, e o texto em prosa vai sendo interrompido de tudo quanto é jeito: com poemas, diálogos teatrais, desenhos, espaços em branco, referências bibliográficas, receitas de drinques (a quem se interessar) e receitas de suicídio (tomem cuidado!).

Mas não são meros experimentos formais, pelo menos não no sentido de que eles pudessem adquirir um protagonismo com relação à história. Em princípio, estamos diante de uma espécie de romance que nos coloca dentro da cabeça de Vittorio, um escritor velho e ranzinza que briga com a esposa e se muda com o irmão e o filho para uma casa na praia, onde passa os dias entre cachorros, gansos e livros.

Deus no meu buraco

Como os velhos são em geral considerados velhos, não pessoas, eles costumam ser encaixados em estereótipos mais ou menos constantes na televisão, na literatura, nas nossas conversas cotidianas. Quantas vezes a gente se refere a um velho ou uma velha no diminutivo, como velhinhos fofos? Pois Vittorio está mais pro oposto do “velhinho”, num outro estereótipo frequente: o do velho rabugento, desagradável, inconveniente e amargo.

duas criadinhas passaram rente a mim, olharam as pantufas e curvaram-se de tanto rir. ouvi as palavras “velho”, “gozado”, “sempre bêbado”. pensei tolas, xerecas fedidas e sempre criadinhas. pensei azedo também sobre a vida. pensei “triste, velhice”, “caralho murcho”, pensei “deus” e toda a asseclagem ao redor dele, chupando-lhe os dedões do pé.

A tristeza é uma das principais palavras do texto, mas ela nunca se resume à resignação. Vittorio está furioso – com a vida, com seu corpo, com Deus. Em seus textos, Hilda Hilst vira e mexe briga com Deus, se revolta com Sua ausência e, quando O encontra, acusa Seu sadismo. Para um final acerto de contas, Vittorio procura Deus por toda parte:

Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo
onde seo Vittorio, onde?
no meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita.
não fala assim, seo Vittorio, é pecado mortal.
deus no meu buraco, é pecado mortal? ah, não é não, Rosinha, deus gosta de tudo, de tudo o que criou, nada é triste, nem escuro, nem amerdalhado, nem fede à bosta nem a malvavisco, tudo é bonito porque vem de deus, viu Rosinha? ele é um dorso sem cara, um chifre negro, um olho azul azul
que lindo, seo Vittorio…

Nesse acerto de contas, o que Vittorio parece sentir, mais do que tudo, é pressa. A vertigem do texto encena isso. A proximidade da morte, muito mais palpável na velhice do que em outras fases da vida (embora a morte, vocês sabem, esteja sempre próxima), faz com que tudo pareça urgente e o tempo de vida, para qualquer coisa, não seja suficiente.

afinal fomos feitos pra quê, hen? afinal você aprende aprende, quando está tudo pertinho da compreensão, você só sabe que vai morrer. que judiaria! que terror! o homem todo aprumado diz de repente: quase que já sei, e aí aquela explosão, aquele vômito, alguns estertores, babas, alguns coices, um jato de excremento e pssss… o homem foi-se.

Foto em branco e preto de dois homens brancos velhos sentados num banco de praça. O enquadramento só nos deixa ver seus corpos da altura do peito até os tornozelos. Os dois estão de terno, com as mãos cruzadas sobre as pernas abertas. O da esquerda segura um chapéu com as mãos
Foto de Catherine Krulik utilizada na capa da primeira edição de Estar sendo. Ter sido

Que se dane

Mas o fim da vida e a chegada da morte também despertam a vontade de, uma última vez, experimentar coisas novas. “[…] deve ser bom na velhice isso de alguém te enrabar”, diz Vittorio. O texto bizarro de Hilda Hilst, talvez um dos mais experimentais de sua extensa obra, foi anunciado pela escritora como sua despedida definitiva da literatura: “É deslumbrante tudo o que escrevi, mas já escrevi tudo o que devia”, disse ela numa entrevista de 1998. E continuou:

Como eu disse antes, eu já escrevi coisas deslumbrantes. Quem não entender, que se dane! Não tenho mais nada a ver com isso. Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Não entendo por que fui nascer aqui na Terra. Com raríssimas exceções, não tenho nada a ver com este mundo.

A desistência (e, em casos como esse, a banana dada ao mundo) é mais um desses traços frequentes em discursos de velhos. E é frequente também que, como em Vittorio, ela ande passo a passo com o desejo de que tudo se acabe, a pressa para fazer tudo a tempo e o desejo de que tudo continue, numa contradição que só é aparente para quem nunca encarou a finitude.

Depois dessa entrevista, a gente sabe, Hilda seguiu escrevendo. Em 2004 ela morreu sem ter lançado nenhum outro livro, e até hoje apareceram apenas alguns inéditos curtos, o que leva a crer que Estar sendo. Ter sido tenha sido, de fato, sua carta de despedida. Para entrar nessa obra complexa, com certeza é uma boa porta. Mas, concordo com Hilda, todas as outras portas servem igualmente. São todas, cada uma à sua maneira, deslumbrantes.

A devastação dos velhos

O vídeo em que Lima Duarte se dirige a Flávio Migliaccio, morto recentemente, tem vários pontos que merecem atenção. Um deles, talvez o que mais tenha comovido as pessoas que comentaram nas redes sociais, é sua declaração de que entende o suicídio do amigo, acrescentando: “Eu não tive a coragem que você teve”.

Não quero me deter nesse ponto, mas também não quero ser leviano com um tema tão sério, então só vou dizer: suicídio não tem exatamente a ver com coragem, e não faz bem a ninguém julgá-lo moralmente, seja execrando ou louvando a pessoa que morreu desse jeito. Caso você esteja pensando em se matar, procure ajuda profissional (o Centro de Valorização da Vida pode ser um bom começo). E para uma análise mais detida da repercussão da morte de Migliaccio, recomendo este texto do pesquisador Thiago Nagafuchi.

Feitos os parênteses, volto ao assunto do blog: Lima Duarte fala sobre a desesperança de sentir “o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68”, ou seja, a sensação de ter no horizonte o retorno de uma situação que, agora, ele não terá disposição para enfrentar. Juntando a isso a vulnerabilidade específica das pessoas maiores de 60 anos à covid-19 e o descaso social e político com essa parte da população, o ator conclui: “Eles promovem a devastação dos velhos”.

Para cego ver: Frame do vídeo de Lima Duarte para Flávio Migliaccio. O ator, um homem velho, careca, de barba branca, veste uma camisa polo verde oliva. Atrás dele há uma parede com fotos e cartazes de seus filmes. Ele olha bravo e aponta o dedo indicador em direção da câmera.

Um costume antipático

É um tema frequente nas representações de como a sociedade pode tratar os idosos: a fantasia utilitária de assassiná-los todos. Quem assistia TV nos anos 90 talvez se lembre do episódio do Dia do Arremesso, da Família Dinossauros. Nele, aprendemos que os dinossauros eram arremessados no Poço de Piche assim que completavam 72 anos. Um costume antigo, mas ainda vigente. (Dá pra assistir o episódio aqui.)

No livro Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores and Morals (1906), o cientista social estadunidense William Graham Sumner fez uma compilação de diversos povos, dos Tupi aos melanésios, que supostamente abreviariam a vida dos mais velhos de modos igualmente imaginativos (não vou citar nenhum pra não dar ideia…).

Alinhado ao darwinismo social da época, Sumner chama esses povos de “primitivos”, diferenciando-os de “nós”, para quem esse tipo de assassinato seria um costume “bastante antipático”. Ainda assim, matar os velhos não seria necessariamente algo cruel: “Os exemplos mostram que, para os povos nômades, o costume é necessário. Os velhos caem ao longo do caminho e morrem de exaustão. Matá-los dá na mesma, e talvez seja mais gentil”.

Pra cego ver: Zilda, personagem do seriado Família Dinossauros. Ela é um boneco dinossauro com um vestido florido, um xale rosa, um colar de pérolas e óculos de avó. Tem uma expressão sonhadora no rosto.
A vovó Zilda não vê a hora de ser atirada do abismo

Uma vez que os “civilizados” são apenas uma versão mais polida dos “primitivos”, “nós” também não estamos livres de ter que recorrer a esse know-how – se, eventualmente, como diz Sumner, “nos encontrarmos em face de circunstâncias primitivas e vivenciarmos a necessidade primeva, que se sobrepõe aos sentimentos da civilização”. Deixar os mais velhos viver seria, então, uma concessão possível de ser feita somente em tempos de paz, fartura, estabilidade.

Por que não devemos matar as pessoas velhas

Com essas premissas, é de se esperar que um tempo de pandemia, crise econômica e catástrofe ambiental não seja o melhor dos mundos para envelhecer.

Mas devemos nos perguntar: qual é o melhor dos mundos para envelhecer? Em algum momento esse mundo existiu? Ou o simulacro de apocalipse em que estamos vivendo apenas evidencia a precária concessão de bondade que nossa civilização faz aos mais velhos? Ainda: surpreende alguém que o projeto de genocida que ocupa a Presidência da República esteja mirando no bode expiatório da vez?

Para cego ver: tweet do perfil @ConJur_Oficial: Por que não devemos matar as pessoas velhas dlvr.it/RW2fjs. Retweet e comentário do perfil @JenioQuadros: A gente não sabe como anda o nível político do país quando debates como esse são levantados

Semanas antes de seu vídeo viralizar na internet, e às vésperas de completar 90 anos, Lima Duarte comentou o pronunciamento de Bolsonaro do dia 24 de março (o do “histórico de atleta”, rs), quando o presidente ironizou as preocupações com a covid-19, minimizou o perigo da doença e defendeu que apenas os idosos se isolassem. “Ele quer que eu morra!”, concluiu o ator. Concordo. Como a História e a Família Dinossauros mostram, nós nunca estamos muito longe de um Poço de Piche, e matar ou deixar morrer um grupo de pessoas é, com frequência, uma resposta atraente a problemas que não queremos encarar.

Em A velhice (1970), Simone de Beauvoir comenta:

“As soluções práticas adotadas pelos primitivos para os problemas que os velhos representam são muito diversas: eles os matam, os deixam morrer, lhes concedem uma sobrevivência mínima, lhes garantem um fim confortável e até mesmo os honram e coroam com louros. Veremos que os povos chamados civilizados aplicam os mesmos tratamentos – apenas o assassinato é proibido, a menos que seja dissimulado”.

O assassinato civilizado que estamos cometendo ultimamente vem disfarçado de raciocínio lógico em falas como a do ministro Nelson Teich sobre sustentabilidade no sistema de saúde. Pressupondo que é inevitável que os mais velhos sejam preteridos durante a pandemia, não interessa muito se a notícia é dada com um levantar de ombros ou com uma tristeza trágica. O tamanho do abismo continua o mesmo.