Um amor proibido

O documentário Secreto e proibido (A Secret Love, 2020), da Netflix, não é grande coisa como filme. Música cafona, cor cafona, um desenvolvimento previsível da história. Mas é uma história que vale a pena.

A fotografia mostra duas mãos brancas e velhas segurando um bolo de fotos antigas, em preto e branco. A foto que vemos, junto com a dona das mãos, mostra duas mulheres sentadas lado a lado, olhando para a câmera e sorrindo.
Divulgação

Terry Donahue e Pat Henschel se conheceram nos anos 1940 e ficaram casadas por 70 anos, embora só tenham sido legalmente casadas por um curto período, no final. É nesse momento que o documentário as acompanha, quando as duas têm por volta de 90 anos e precisam encontrar uma casa de repouso onde possam morar, e enfim têm a oportunidade e a coragem de sair do armário.

Asilos

Também já é um pouco vintage essa expressão, “sair do armário”. Um problema dos anos 1990, quando os mundos hétero e gay se encontraram de um jeito um tanto trágico, um pouco cômico, e começaram a se encaixar aqui e ali. Com as conquistas do então chamado movimento gay, e com o horror da aids, as LGBT+ puderam botar a cara no sol depois de décadas de exílio, sendo expulsas de casa e forçadas a se esconder ou se camuflar na heterossexualidade.

Terry e Pat viveram a maior parte desse exílio. Se mudaram do Canadá para os Estados Unidos porque, para viver, precisavam ser desconhecidas. Lá elas se apresentavam como primas, e quando voltavam para a terra natal em feriados se apresentavam como amigas. Tinham uma família em cada país: a verdadeira, no Canadá, formada por relações inevitáveis entre pessoas que nunca tiveram que fugir; a verdadeira, nos Estados Unidos, formada pelas escolhas do acaso e do coração.

As duas famílias se encontram na cerimônia de casamento, na casa de repouso. Aí também se encontram dois exílios: o imposto pela lesbofobia e outro, tantas vezes atribuído à velhice, de não reconhecer o mundo ao redor, e não se reconhecer nele.

Descumprindo regras

Talvez seja típico do nosso tempo o esforço da família canadense para manter Terry e Pat juntas e bem, celebrando o amor delas, ainda que este seja uma novidade dentro do mundo heterossexual. Outro filme vem à mente, o bonito Um caso de amor (The Sum of Us, 1994), comédia australiana bem típica dos anos 1990, uma década que felizmente passou. Este também tem um casal de lésbicas velhas, mas não vou dar spoiler. Talvez o filme mereça outro post.

De A Secret Love é impossível dar spoilers, porque é realmente muito previsível. Mas o filme acerta ao fazer uma espécie de ápice de um diálogo no qual um rapaz diz a Terry: “Você descumpriu regras a vida toda”. Ao que ela responde: “Sim, descumpri. Por isso sou feliz”. A velhinha fofa na cadeira de rodas é uma incendiária, quem diria. E ela chegou, junto com sua esposa, a um tempo em que o incêndio está por toda parte, pintando um pôr do sol muito bonito.

Talvez o filme não seja tão ruim, no final das contas. Afinal, depois de tanta opressão e desgraça, a gente bem que merece um pouco de tom pastel, música romântica, fins imprevisíveis.

Cena do filme Secreto e proibido. Terry e Pat se beijam. Elas são velhas, de cabelo branco curto, e estão sentadas a uma mesa com um bolo e copos, na festa de casamento.

Um ciclone dentro de mim

Phedra de Córdoba em cena do filme Phedra (2008), de Claudia Priscilla

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Do armário da artista saem muitas de suas memórias, vestidos que foram usados em performances grandiosas, iluminadas, em que a diva do palco é uma espécie de corpo arquetípico, ideal.

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Em Memória e sociedade: lembranças de velhos (1979), Ecléa Bosi defende que a memória é a “função social” dos velhos. “É o momento de desempenhar a alta função da lembrança. Não porque as sensações se enfraquecem, mas porque o interesse se desloca, as reflexões seguem outra linha e se dobram sobre a quintessência do vivido.” Teoricamente o velho, desobrigado das atividades cotidianas que ocupam os adultos, se voltaria para o passado para realizar “a religiosa função de unir o começo ao fim”.

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Phedra de Córdoba (1938-2016) relembra ao mesmo tempo que revive. Suas mãos reencenam os movimentos que ela fazia no palco.

Mas a reencenação é uma nova encenação. Não se trata de uma reprise ou uma cópia de segunda mão. O filme Phedra (2008), de Claudia Priscilla, explicita isso no salto do quarto da atriz para sua performance no palco, nos cortes que faz entre os momentos em que Phedra conta suas histórias e aqueles em que ela dança, canta, representa e toca castanholas.

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Dois momentos do vestido: guardado, ele é passado; no corpo, se faz presente. “Eu tinha um ciclone dentro de mim, como até hoje eu tenho”, diz Phedra. As memórias podem ser vestidas a qualquer momento, mas o corpo que as veste tem uma força contínua.

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Hilda Hilst, em Estar sendo. Ter sido: “revivir es vivir más”. Repetição é acúmulo, potência, intensidade.

Phedra de Córdoba em cena do filme Phedra (2008), de Claudia Priscilla

Phedra pode ser visto no LGBTFLIX, plataforma de cinema que o #VoteLGBT preparou para a gente ver filmes durante a quarentena. Clique aqui para assistir.

O prazer da solidão

Cena do filme Irene. Mulher caminha sozinha na beira de uma rua vazia, cercada de mato e árvores. Ela carrega uma sacola na mão direita e uma bolsa a tiracolo. Com a mão esquerda, segura um guarda-chuva.

Existem vários tipos de solidão. Talvez cada pessoa, sozinha, encontre um deles.

A escritora Miriam Alves contou na revista Piauí sobre o isolamento social durante o processo de criação de seu romance mais recente, Maréia: “A reclusão também me mostrou que a solidão, quando desejada, pode ser uma aventura transgressora numa sociedade que valoriza tanto o estar com o outro, ainda que em circunstâncias desagradáveis”.

Cinema mudo

Irene é sozinha. Ela mora numa casa ampla, afastada do barulho urbano, e faz as coisas sem pressa: escolhe o feijão, acende o cigarro, caminha pela rua vazia para comprar mantimentos. O curta-metragem que leva seu nome, dirigido por Patrícia Galucci e Victor Nascimento e lançado em 2011, invade a vida de Irene no fim de semana que ela recebe a visita da neta adolescente, que traz uma amiga para brincar na piscina e pernoitar.

As meninas são barulhentas e agitadas, correm pela casa aos risinhos, cochicham, se cutucam, se fazem cócegas. Mal olham para a velha, que cozinha o almoço e lava a louça como se esses dois núcleos pertencessem a filmes diferentes. Só de vez em quando é que Irene (ela mesma um núcleo inteiro) estende o olhar para além de seu filme e observa, atenta, sem interferir, o que se passa no filme das meninas.

Cena do filme Irene. Close na personagem, interpretada por Iná de Carvalho. Ela é uma mulher velha, branca, de cabelos castanhos lisos na altura do ombro. Ela veste uma blusa bege. Seus grandes olhos estão bem abertos, olhando na direção do lado direito da tela.
A atriz Iná de Carvalho no curta-metragem Irene (2011)

Aos poucos vemos que a incomunicabilidade não tem nada de triste, e talvez nem se trate de falta de consideração da neta com relação à avó. A distância acontece naturalmente, ninguém força a barra para suprimi-la. Na falta de conexão entre os dois filmes que dividem o espaço da casa, mesmo o irritante ruído de fundo dos risinhos das meninas é uma inconveniência leve, que não vai durar mais que o fim de semana. E, uma vez que a câmera acompanha apenas a avó silenciosa, os diálogos entre as adolescentes se perdem na distância, não despertam interesse. É quase um filme mudo. É o filme de Irene, afinal.

Banho

O que fica cada vez mais evidente é que a velha gosta muito de ficar sozinha. Seu rosto melancólico forma sorrisos sutis quando ela aprecia algo com calma – o contato dos pés com a água da piscina, a visão dos corpos molhados e seminus das meninas, a masturbação durante o banho de banheira (cena raríssima no cinema: uma mulher velha, sem roupa, se masturbando, sem nenhuma ridicularização do prazer dela. Salva de palmas para a diretora, o diretor e a atriz Iná de Carvalho).

Toda essa umidade das cenas faz transbordar o erotismo do filme, que poderia estar contido no lesbianismo clichê entre ninfetas ou na perversidade possível do incesto entre avó e neta, mas se realiza, de modo inesperadamente original, no mais solitário dos prazeres. A longa cena da siririca de Irene deixa mais literal o que percebemos ao longo do filme: o prazer com que a personagem vive a solidão.

Cena do filme Irene. Mulher velha deitada na banheira. Ela está nua, com o corpo molhado, de barriga para cima, se masturbando com a mão direita entre as pernas.

Enquanto o filme das meninas se desenvolve numa temporalidade que esperamos típica da adolescência, regida pela frivolidade e pelo encanto das primeiras vezes, o filme de Irene tem um tempo decantado, no qual mesmo a visão do colo nu da amiga da neta, apesar de inédita, adquire ares de rememoração. O curta-metragem, no entanto, encena esses lugares-comuns sem apelar para outro clichê: o da solidão triste da idosa. Isso dá também para nós, espectadores, a perspectiva de uma solidão alegre e prazerosa – aquela que pode ser uma aventura transgressora, como disse Miriam Alves.

Cena do filme Irene. Através de uma janela, vemos a mulher sentada na beira da piscina com um maiô verde. Ela olha para cima com um sorriso e balança os pés na água.

Irene pode ser visto no LGBTFLIX, plataforma de cinema que o VoteLGBT preparou para a gente ver filmes durante a quarentena. Clique aqui para assistir.