Cada aula vai abordar uma face da erótica hilstiana, e a aula introdutória será dada pela organizadora do curso, minha orientadora e a grande especialista brasileira em erotismo literário, Eliane Robert Moraes.
E, por falar em Hilda Hilst, vou também mediar a mesa de conversa com artistas que trabalharam adaptações da obra da escritora no colóquio Hilda Hilst 90, também virtual, de 27 a 29 de outubro. Mais informações aqui.
Neste mês do Orgulho LGBT, resolvi resenhar aquele que talvez seja o texto mais homoerótico de Hilda Hilst: Rútilo nada.
O conto (vamos chamar assim pra facilitar) foi publicado pela primeira vez em 1993 junto com as novelas (de novo, o rótulo é só um atalho) A obscena senhora D e Qadós, ambas publicadas anteriormente em outros volumes. Depois disso, nas Obras Reunidas da autora, a editora Globo lançou o texto no livro Rútilos, junto com um volume de contos (ai, ai) que também nunca foi publicado em volume único, Pequenos discursos. E um grande, de 1977. Enfim, atualmente, Rútilo nada pode ser encontrado na coletânea Da prosa, da Companhia das Letras.
Confuso? Um pouco, mas faz parte. Ao mesmo tempo que Hilda Hilst está sempre buscando o que existe de mais singular, ela não é muito dada às fronteiras e às definições estritas. Isso se reflete na bagunça editorial que seus livros provocam, e com certeza pode ser visto nas poucas páginas desse texto que é simultaneamente pequeno e vasto.
Vertigem de paixão
“Os sentimentos vastos não têm nome.” Assim começa Rútilo nada, e aos poucos vamos percebendo do que se trata. Aos 35 anos, o jornalista Lucius Kod desaba sobre o cadáver do jovem Lucas, namorado de sua filha que se tornou seu amante, levando Lucius a uma vertigem de paixão.
O amor que avassala é uma das situações preferidas de Hilda Hilst, mas também das narrativas de pessoas velhas que se veem capturadas pelo desejo por uma pessoa jovem (por exemplo, Lolita, de Vladimir Nabokov, ou Morte em Veneza, de Thomas Mann). A própria Hilda explorou esse tema em outro texto, “Agda”, de 1973. A ideia de uma ninfeta ou ninfeto levando frescor ao corpo guardado de uma velha ou um velho é tão frequente nas artes que deverá aparecer ainda muitas vezes neste blog – mas, aos 35 anos, Lucius Kod pode ser chamado de velho?
[…] verdes espinhos de um ciúme opulento, úmidos longos espinhos aguçando sua própria matéria de carne, carne de Lucius antes era mansa e tépida, brioso corpo de antes tão educado respondendo rápido a qualquer afago, de mulheres naturalmente, ah sim, naturalmente, […]
Embora a idade cronológica seja um dado importante, ela não é a única definidora da idade de alguém. Lucius se identifica a um marasmo e cansaço que costumam ser associados com personagens velhos, e a revolução que Lucas provoca em sua vida faz com que signos de juventude inundem o texto – “e um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe”.
Do outro lado, Lucas tem 20 anos, mas é “criterioso e maduro”, tem “alma velha”. É sobre a assinatura dele que Hilda Hilst escreve uma série singular de poemas, fazendo do quase adolescente um de seus muitos quase heterônimos, autor de versos solenes, ou seja, nada jovens.
(II)
Muros dilatados de doçura: Romãs. Dálias purpúreas. Irmãos adultos Recostados na manhã de chuvas.
Muros do encantado da luxúria. Fendas. Nesgas de maciez.
Viscoso e cintilante
Rútilo nada é um texto ele próprio velho, ao menos pelo fato de ser uma continuação ou um desdobramento de outro, publicado 15 anos antes, quando Lucas foi o nome de um personagem cronologicamente velho que se vê, como Lucius Kod, arrebatado por um jovem. “Lucas, Naim”, um dos contos de Pequenos discursos. E um grande, também trabalha esse lugar-comum do casal em que a diferença de idade é motivo de medo e deslumbre do parceiro velho, que tem a vida virada de cabeça pra baixo pelo jovem:
Hoje devo dizer a ele desse impermissivo agudo intolerável aqui por dentro, ajustar a seus olhos paixão e velhice, pontiagudos opostos, duas lentes, uma vermelha lustrosa alongada e brilhante, inchando o mundo, sereia, magenta à tua volta, me tocas e toda opacidade do mundo é prata e passível de ideia, posso reformular unha e falange, pelos e pobrezas, voltar a ser esplêndido-humano, único, aquele pensado pela primeira cabeça, […]
Nos casos de Rútilo nada e “Lucas, Naim”, outro elemento com potencial de terremoto na vida dos homens mais velhos é o desejo por outros homens. Tanto quanto a diferença de idade, a identidade do sexo é inesperada – e surpreende por ser inesperadamente boa. Lucius Kod: “eu, um homem, suguei teu sexo viscoso e cintilante, deboche e clarão na lisura da boca, ajoelhado, furioso de ternura, revi como os afogados a rua do meu passo […]”.
Por meio da surpresa, o desejo que se impõe sobre o indivíduo se choca contra o muro das convenções e causa as tragédias narradas nesses dois textos. Mas não vou falar delas. Porque, não só trágicos, esses choques também mostram para os personagens que os vivem – e pra gente, que está lendo – a fragilidade de tabus e preconceitos – como são precários e inúteis todos os esforços para conter, em palavras ou paredes, a vastidão dos sentimentos.
Vale lembrar que, enquanto “Lucas, Naim” foi publicado em plena ditadura militar (e faz parte de um volume de contos que está entre as obras mais explicitamente políticas de Hilda Hilst), Rútilo nada veio a público no auge da crise da aids, quando a doença e o desejo entre homens eram tidos como quase sinônimos. O HIV não é citado no conto, mas está lá, presente entre os tijolos dos muros escritos por Lucas.
Quando as pessoas descobrem que eu estudo a obra da Hilda Hilst, muitas vezes me perguntam: por onde começar a ler? A resposta varia muito. Hoje, vamos começar pelo fim.
Ou um dos fins. Estar sendo. Ter sido foi o último livro inédito publicado enquanto Hilda ainda estava viva. A primeira edição (que continua sendo a melhor) é de 1997, da editora Nankin. Depois foi reeditado pela Globo nos anos 2000 (uma edição infelizmente cheia de erros que atrapalham um pouco a leitura) e, mais recentemente, no volume Da prosa, da Companhia das Letras.
Como quase todos os livros da Hilda, Estar sendo. Ter sido é esquisito e não pode ser encaixado sem problemas em um gênero literário. É um dos textos mais extensos da autora, mas tem o mesmo compasso fragmentado do resto da sua prosa. Quer dizer: a história vai engasgando, dando cavalos de pau, e o texto em prosa vai sendo interrompido de tudo quanto é jeito: com poemas, diálogos teatrais, desenhos, espaços em branco, referências bibliográficas, receitas de drinques (a quem se interessar) e receitas de suicídio (tomem cuidado!).
Mas não são meros experimentos formais, pelo menos não no sentido de que eles pudessem adquirir um protagonismo com relação à história. Em princípio, estamos diante de uma espécie de romance que nos coloca dentro da cabeça de Vittorio, um escritor velho e ranzinza que briga com a esposa e se muda com o irmão e o filho para uma casa na praia, onde passa os dias entre cachorros, gansos e livros.
Deus no meu buraco
Como os velhos são em geral considerados velhos, não pessoas, eles costumam ser encaixados em estereótipos mais ou menos constantes na televisão, na literatura, nas nossas conversas cotidianas. Quantas vezes a gente se refere a um velho ou uma velha no diminutivo, como velhinhos fofos? Pois Vittorio está mais pro oposto do “velhinho”, num outro estereótipo frequente: o do velho rabugento, desagradável, inconveniente e amargo.
duas criadinhas passaram rente a mim, olharam as pantufas e curvaram-se de tanto rir. ouvi as palavras “velho”, “gozado”, “sempre bêbado”. pensei tolas, xerecas fedidas e sempre criadinhas. pensei azedo também sobre a vida. pensei “triste, velhice”, “caralho murcho”, pensei “deus” e toda a asseclagem ao redor dele, chupando-lhe os dedões do pé.
A tristeza é uma das principais palavras do texto, mas ela nunca se resume à resignação. Vittorio está furioso – com a vida, com seu corpo, com Deus. Em seus textos, Hilda Hilst vira e mexe briga com Deus, se revolta com Sua ausência e, quando O encontra, acusa Seu sadismo. Para um final acerto de contas, Vittorio procura Deus por toda parte:
Rosinha, ele está aí dentro, estou sentindo onde seo Vittorio, onde? no meu cu, idiota, ah, está bem, não chora, já vi que você não entende nada de deus, eu precisava é falar com Dom Deo, mostrar-lhe o único buraco aqui na Terra onde deus habita. não fala assim, seo Vittorio, é pecado mortal. deus no meu buraco, é pecado mortal? ah, não é não, Rosinha, deus gosta de tudo, de tudo o que criou, nada é triste, nem escuro, nem amerdalhado, nem fede à bosta nem a malvavisco, tudo é bonito porque vem de deus, viu Rosinha? ele é um dorso sem cara, um chifre negro, um olho azul azul que lindo, seo Vittorio…
Nesse acerto de contas, o que Vittorio parece sentir, mais do que tudo, é pressa. A vertigem do texto encena isso. A proximidade da morte, muito mais palpável na velhice do que em outras fases da vida (embora a morte, vocês sabem, esteja sempre próxima), faz com que tudo pareça urgente e o tempo de vida, para qualquer coisa, não seja suficiente.
afinal fomos feitos pra quê, hen? afinal você aprende aprende, quando está tudo pertinho da compreensão, você só sabe que vai morrer. que judiaria! que terror! o homem todo aprumado diz de repente: quase que já sei, e aí aquela explosão, aquele vômito, alguns estertores, babas, alguns coices, um jato de excremento e pssss… o homem foi-se.
Que se dane
Mas o fim da vida e a chegada da morte também despertam a vontade de, uma última vez, experimentar coisas novas. “[…] deve ser bom na velhice isso de alguém te enrabar”, diz Vittorio. O texto bizarro de Hilda Hilst, talvez um dos mais experimentais de sua extensa obra, foi anunciado pela escritora como sua despedida definitiva da literatura: “É deslumbrante tudo o que escrevi, mas já escrevi tudo o que devia”, disse ela numa entrevista de 1998. E continuou:
Como eu disse antes, eu já escrevi coisas deslumbrantes. Quem não entender, que se dane! Não tenho mais nada a ver com isso. Eu não sinto que esteja num mundo que seja o meu mundo. Devo ter caído aqui por acaso. Não entendo por que fui nascer aqui na Terra. Com raríssimas exceções, não tenho nada a ver com este mundo.
A desistência (e, em casos como esse, a banana dada ao mundo) é mais um desses traços frequentes em discursos de velhos. E é frequente também que, como em Vittorio, ela ande passo a passo com o desejo de que tudo se acabe, a pressa para fazer tudo a tempo e o desejo de que tudo continue, numa contradição que só é aparente para quem nunca encarou a finitude.
Depois dessa entrevista, a gente sabe, Hilda seguiu escrevendo. Em 2004 ela morreu sem ter lançado nenhum outro livro, e até hoje apareceram apenas alguns inéditos curtos, o que leva a crer que Estar sendo. Ter sido tenha sido, de fato, sua carta de despedida. Para entrar nessa obra complexa, com certeza é uma boa porta. Mas, concordo com Hilda, todas as outras portas servem igualmente. São todas, cada uma à sua maneira, deslumbrantes.